Começar uma crónica com a palavra caridade é enfrentar a parede da famoso lápis azul da censura que nos amarrou antes do 25 de Abril e que hoje bloqueia a liberdade de análise nos órgãos de comunicação social. Mas é uma tarefa de ontem e de hoje e portanto – eu que não gosto do “politicamente correcto” – aqui estou para remar contra a maré.
E coloco-me neste patamar narrativo para sublinhar o melhor que existe no nosso país, em termos sociais, para explicar o verdadeiro “milagre” português que está a acontecer nas instituições particulares de solidariedade e de outras organizações comunitárias na protecção e luta contra o drama da pandemia.
São milhares de pessoas – mais de setenta mil – que diariamente, depois de largarem os seus empregos, se deslocam para as instituições para garantirem a melhor gestão do bem público que é o de acolher crianças e idosos nas mais diversas soluções que as IPSS garantem à comunidade; são muitas mais as pessoas que pela sua actividade profissional nestas organizações constituem um exército de bem fazer e cuidar dos nossos amigos e familiares, permitindo assim que nos dediquemos às nossas tarefas profissionais, sabendo nós que os nossos entes queridos estão “protegidos e em boas mãos”.
Já parou para pensar – não é preciso muito tempo – o que seria da actividade económica no nosso país, se não tivéssemos estas instituições de retaguarda?
A minha vida profissional levou-me a conhecer estas respostas sociais desde os anos 80 e posso dizer que conheço relativamente bem os tipos de respostas que são dadas em todo o país. Uma resposta da sociedade civil que, alheia a preocupações e estratégias partidárias e mesmo políticas, se mantém na primeira linha de fogo, todos os dias.
Encontro nestas instituições exemplos e testemunhos de caridade (fazer bem com espírito de humanidade). Dizendo isto com linguagem politicamente correcta “serviços de proximidade no respeito pelos direitos dos utentes!
Mas eu vejo caridade e muita quando visito instituições e partilho algum tempo com os seus dirigentes e trabalhadores. Quando aqui entramos vemos que é diferente visitar uma instituição ou visitar uma empresa, e verificar a entrega e carinho que verificamos na actividade de cada um.
Eu conheço as motivações que são históricas na inconveniência de usar o termo caridade. Vem de longe: na obra “A alma do homem sob o socialismo”, de Óscar Wilde, refere-se que “um modo ridiculamente inadequado de restituição parcial … geralmente acompanhado por alguma tentativa impertinente por parte do sentimentalista de tiranizar as vidas privadas [dos pobres]”, bem como um remédio que prolonga a ‘doença’ de pobreza, em vez de curá-la”.
Quem cheira e sente o odor dos pobres e visita crianças e velhos nas instituições conhece bem esta posição. Aliás, um pensador esloveno, Slavo Zizek, comenta o efeito da caridade sobre quem a recebe desta maneira: “ “Pelo preço de um par de cappuccinos, você pode continuar na sua vida ignorante e prazerosa, não só não sentindo culpa, mas sentindo-se bem por ter participado da luta contra o sofrimento!” (Slavoj Žižek (2010). Living in the End Times).
Em português corrente é comum dizer-se que “não há lugar para a caridade perante o que é devido pela justiça! Isto vem de longe.
Friedric Engels, lembra-nos já em 1845, com base na condição da classe trabalhadora na Inglaterra, quando aponta que as doações, seja por governos ou indivíduos, são frequentemente vistas pelos doadores como um meio de esconder o sofrimento que é desagradável de ver. Engels cita de uma carta ao editor de um jornal inglês que reclama que o burgês inglês “(…) é caridoso por interesse próprio; não dá nada de imediato, mas considera suas doações como um negócio, faz um acordo com os pobres, dizendo: “Se eu gasto tanto em instituições benevolentes, compro o direito de não ser mais incomodado, e você é obrigado a ficar nos seus buracos escuros e não irritar os meus tenros nervos, expondo sua miséria. Você deve-se desesperar como antes, mas você deve-se desesperar sem ser visto, isso eu exijo, isso eu compro com a minha assinatura de vinte libras para a enfermaria! É infame, essa caridade de um burguês cristão!”
Esta posição de Engels fez bom caminho no discurso político social sobretudo na Europa e felizmente teve consequências recentes na política portugesa:
Quero lembrar a instituição do salário mínimo;
Evolução do salário mínimo em Portugal desde 1974 até 2006 | |||
Efectivo em | Serviço Doméstico |
Agricultura | Restantes Actividades |
27 de Maio de 1974 | 3300$ | ||
16 de Junho de 1975 | 4000$ | ||
1 de Janeiro de 1977 | 3500$ | 4500$ | |
1 de Abril de 1978 | 3500$ | 4500$ | 5700$ |
10 de Outubro de 1979 | 4700$ | 6100$ | 7500$ |
1 de Outubro de 1980 | 5700$ | 7500$ | 9000$ |
1 de Outubro de 1981 | 6800$ | 8950$ | 10700$ |
1 de Janeiro de 1983 | 8300$ | 10900$ | 13000$ |
1 de Janeiro de 1984 | 10000$ | 13000$ | 15600$ |
1 de Janeiro de 1985 | 13000$ | 16500$ | 19200$ |
1 de Janeiro de 1986 | 15200$ | 19500$ | 22500$ |
1 de Janeiro de 1987 | 17500$ | 22400$ | 25200$ |
1 de Janeiro de 1988 | 19500$ | 24800$ | 27200$ |
1 de Janeiro de 1989 | 22400$ | 28400$ | 30000$ |
1 de Julho de 1989 | 24000$ | 30000$ | 31500$ |
1 de Janeiro de 1990 | 28000$ | 34500$ | 35000$ |
1 de Janeiro de 1991 | 33500$ | 40100$ | |
1 de Janeiro de 1992 | 38000$ | 44500$ | |
1 de Janeiro de 1993 | 41000$ | 47400$ | |
1 de Janeiro de 1994 | 43000$ | 49300$ | |
1 de Janeiro de 1995 | 45700$ | 52000$ | |
1 de Janeiro de 1996 | 49000$ | 54600$ | |
1 de Janeiro de 1997 | 51450$ | 56700$ | |
1 de Janeiro de 1998 | 54100$ | 58900$ | |
1 de Janeiro de 1999 | 56900$ | 61300$ | |
1 de Janeiro de 2000 | 60000$ | 63800$ | |
1 de Janeiro de 2001 | 64300$ | 67000$ | |
1 de Janeiro de 2002 | 68410$ 341,23 € |
69770$ 348,01 € |
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1 de Janeiro de 2003 | 353,20 € | 356,60 € | |
1 de Janeiro de 2004 | 365,60 € | ||
1 de Janeiro de 2005 | 374,70 € | ||
1 de Janeiro de 2006 | 385,90 € |
Em 2007, as regiões autónomas passaram cumulativamente a fixar o próprio salário mínimo
Efectivo em | Portugal Continental | R. A. Dos Açores | R. A. Da Madeira |
1 de Janeiro de 2007 | 403,00 € | 423,15 € | 411,16 € |
1 de Janeiro de 2008 | 426,00 € | 447,30 € | 434,52 € |
1 de Janeiro de 2009 | 450,00 € | 472,50 € | 459,00 € |
1 de Janeiro de 2010 | 475,00 € | 498,75 € | 484,00 € |
1 de Janeiro de 2011 | 485,00 € | 509,25 € | 494,00 € |
1 de Outubro de 2014 | 505,00 € | 530,25 € | 515,00 € |
1 de Janeiro de 2016 | 530,00 € | 556,50 € | 540,60 € |
1 de Janeiro de 2017 | 557,00 € | 584,85 € | 568,14 € |
1 de Janeiro de 2018 | 580,00 € | 609,00 € | 592,00 € |
1 de Janeiro de 2019 | 600,00 € | ||
1 de Janeiro de 2020 | 635,00 € |
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Quero lembrar o Rendimento Mínimo de Inserção:
A criação do Rendimento Mínimo Garantido veio dar resposta à recomendação do Conselho de Ministros da União Europeia para que os Estados-membro reconhecessem «no âmbito de um dispositivo global e coerente de luta contra a exclusão social, o direito fundamental dos indivíduos a recursos e prestações suficientes para viver em conformidade com a dignidade humana».
A lei foi criada a 29 de junho de 1996 e Eduardo Ferro Rodrigues, Ministro da Solidariedade e Segurança Social na altura, afirmou então que passava a ser reconhecido «a cada cidadão residente em Portugal o direito a um nível mínimo de subsistência, desde que se encontre numa situação de exclusão social e esteja ativamente disponível para seguir um caminho de inserção social».
Estes dois pilares – salário mínimo e rendimento mínimo de inserção – garantem a “democratizaçao do dinheiro” em Portugal e são estruturais na luta contra a pobreza.
Vivemos pois num estado democrático, com uma rede de respostas sociais de excelência e com uma resposta eficaz perante as surpresas que a civilização coloca.
Mas não chega: o modelo de organização económica e a filosofia financeira que lhe subjaz tem de ser questionado. E temos de começar por responder às preocupações dos mais pobres pois é aí que devemos testar todas as teorias para encontrarmos um caminho que não exclua ninguém.
Hoje a globalização da informação, garantida pela internet, pede ao pobre para fazer download de imagens e de soluções de luxo, quando ele anda de chinelos e procura em cada dia comida para os filhos. Neste enquadramento que solução procurar, sabendo – como lembra o Papa Francisco – que “ninguém se salva sozinho”.
Precisamos de caridade – querer bem – para, não esquecendo ninguém, encontrarmos um modelo democrático preocupado em salvar os pobres como medida preferencial e só depois ter tempo para salvar as instituições financeiras.
Um morcego na China colocou o mundo de pernas para o ar e pôs as pessoas a questionar o sentido da vida, e talvez da história. Imaginem se os pobres se revoltam, acampam nas ruas e exigem ser tratados com humanidade no respeito pelos seus direitos.
O sol nasce para todos, mas as sombras do dinheiro desenham trevas que é preciso enfrentar.
Arnaldo Meireles, jornalista editor de Sociedade Justa.
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