Escrevo esta crónica quando Angola, com 32 milhões de pessoas, se prepara para a 2ª prorrogação do Estado de Emergência, até 10 de maio, e regista 25 casos confirmados, 2 mortos e 6 recuperados.
Cruzei-me por estes dias numa estrada de Luanda com um autocarro de transportes públicos escoltado à frente, atrás, nas laterais, por polícia de trânsito e de intervenção. Pirilampos ligados, honras de chefia de estado ou de alguém importante. No interior, meia dúzia de pessoas, afastadas, com máscara. Acabei, coincidentemente, a fazer o mesmo percurso, vi que o autocarro entrou numa unidade hoteleira, transformada em centro de quarentena institucional.
Honras quase de Estado não com as figuras de proa que os angolanos viram nestas últimas décadas. Honras não protocolares, mas de dignidade e respeito pelos cidadãos angolanos.
Com todos os constrangimentos, inquietude, medo, estranheza e incerteza com que a Covid-19 confinou o mundo, em Angola a pandemia marca o ano zero da civilização. Pode parecer estranho, mas a pandemia transformou um programa de intervenção num manifesto claro de sentimento e respeito pela vida humana.
Porque me surpreendo então com o assegurar de um dos mais elementares direitos humanos? Em Luanda há cerca de 18 meses, e ainda não vi a cidade das mais caras do mundo. E a água, esse bem essencial para combater o mal destes tempos? Não encontrei as infraestruturas erigidas com os milhões do tempo do boom do petróleo, que é feito dos hospitais, iguais àqueles em que os dirigentes se trataram nas últimas décadas, e, azar meu, devo ter-me perdido na imensa Luanda ao ponto de não ter encontrado as escolas públicas que não bastam para os milhares de alunos que todos os anos ficam de fora do sistema. Apenas vejo a arrebatadora Capital que há uns anos sumptuosamente se engalanava com o maior número de gruas do mundo, sinal de crescimento económico, mas que pouco beneficiou o povo angolano. O mesmo cuja vida pouco valia para a classe dirigente.
Voltando à vaca fria, ao Covid-19. Conhecendo bem as fragilidades do país a quase todos os níveis, as autoridades assumiram o confinamento como palavra de ordem. Era preciso evitar o contágio das comunidades numerosas, numa Capital com, presume-se, 10 milhões de pessoas!
Como é que se diz à criança angolana, que sobrevive da rua a engraxar sapatos, que não pode sair? E aos rapazes que vendem bugigangas electrónicas, jornais, tapetes, roupa, calçado, e aos que fazem manicure na rua? Então, e os milhares de mulheres que diariamente zungam avenidas e bairros para vender fruta, e com isso, sustentar a família? E aos infindáveis motoristas de táxi, de “candongueiro” e de moto? E aos que sobrevivem pedindo nas zonas mais movimentadas?
Ao contrário da Europa e de quase todo o resto do mundo em África a grande dificuldade joga-se no equilíbrio entre as medidas sanitárias, para conter a propagação do vírus, e a sobrevivência de milhões de pessoas, cujo palco da luta é a própria rua. Ganha-se ao dia para comer no próprio dia! A outra grande, enorme, gigante dificuldade é o que não existe: hospitais com condições, equipamentos, recursos humanos.
Tudo reunido para correr mal!
Era isto que todos vaticinavam para Angola, eu incluída, mal o coronavírus começou a propagar-se pelo mundo, ceifando vidas e pondo os sistemas de saúde à prova e ao leu o desinvestimento feito por muitos países desenvolvidos, alguns na lista das potências mundiais. Ainda o país não tinha nenhum caso positivo confirmado e já nacionais e estrangeiros conjecturavam uma visão e um cenário catastrófico, Repito, eu incluída. Ninguém acreditava que Angola tivesse o discernimento político e capacidade técnica para definir uma estratégia e muito menos que fosse capaz de confinar milhões de pessoas, num país em que a economia informal ronda os 80%. Tudo se vende e compra nas ruas. Os núcleos familiares são numerosos, sem condições de privacidade e afastamento.
Angola declarou o Estado de Emergência a 27 de março, com apenas 3 casos de Coronavírus confirmados. Muito antes, em meados de Fevereiro em alguns aeroportos do país já se media a temperatura aos passageiros e obrigava à desinfecção das mãos. No dia 3 de Março, o país fechou fronteiras a cidadãos vindos de 7 países e desde então quem chega do exterior passa a cumprir quarentena; dia 20 encerrou fronteiras aéreas, terrestres e marítimas por uma quinzena e dia 24 fechou todas as escolas públicas e privadas; é deliberado um aumento de 3% no salário dos trabalhadores, de Abril a Junho, com a transferência do valor da Segurança Social; são suspensos os cortes de água e luz durante a pandemia; cai saldo grátis nos telemóveis para chamadas de urgência para as linhas de saúde; militares saem para as ruas, polícias ficam nos limites dos bairros populosos de Luanda, para evitar a circulação indevida; aperta-se o controlo à entrada nos condomínios; veículos com mensagens sonoras apelam ao confinamento; os azuis Toyota Hiace passam a circular com um máximo de 6 pessoas; os doentes infectados são tratados na maior clínica privada da Capital; são criadas equipas de resposta rápida para acompanhamento epidemiológico e clínico; as autoridades aconselham à suspensão temporária de empregadas domésticas, motoristas e jardineiros; reduzem-se os horários de funcionamento dos supermercados; encerram-se os maiores mercados de rua e mercearias de bairro; montam-se campanhas na comunicação social em português e nos principais dialectos; a língua gestual entra na comunicação; brigadas chegam aos povoados mais recônditos das províncias distantes; privados e voluntários distribuem milhares de barras de sabão nos maiores aglomerados; nos últimos dias chegaram a Luanda 250 médicos cubanos para formar outros técnicos e chegar às províncias.
Nem tudo correu bem, não! Houve falhas, claro que sim! Nos países com sistemas de saúde bem preparados, com menos densidade populacional e com todas as infraestruturas básicas, quase nenhum ficou incólume à pandemia.
Tinha tudo para correr mal!
“Ajudar alguém durante uma dificuldade é onde a civilização começa” disse Margaret Mead, antropóloga cultural norte-americana, que viveu no século passado.
Por tudo o que tenho presenciado, Angola vive o ano zero da civilização. Creio não estar enganada, mas será inédito na história de Angola uma intervenção desta dimensão centrada nas pessoas. O valor da vida humana falou mais alto. A salvaguarda da saúde está nas ruas, o povo angolano está a ser o beneficiário de investimento público.
Angola, como todos os países, sairá fragilizada economicamente deste duro e imprevisível golpe, quase de ruptura pela crise mundial do petróleo, mas acredito que o povo angolano sai reconfortado deste amparo do poder político, que sempre se centrou no seu próprio bem-estar, com direitos e garantias para uma elite e quase nunca para o povo. A Nação Angolana prova também ao mundo que apesar dos “custos” que o confinamento está a ter nas suas vidas, sabe estar à altura de um problema global.
Nem tudo correu bem, tinha tudo para correr mal!
Olga Leite, jornalista, residente em Luanda, para Sociedade Justa.
(Imagem de destaque de domtotal.com)
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