O clericalismo como função e a fé que se vai perdendo

A tragédia com o clericalismo não é menor do que o advogado corporativo ou o magnata empresarial que conquistou o mundo inteiro, mas perdeu a própria alma; em outras palavras, eles perderam quem eles estavam destinados a se tornar.
A opinião é do padre canadense Mark Slatter, da Arquidiocese de Ottawa, Canadá, professor de Ética Teológica na Saint Paul University, em Ottawa, publicada por National Catholic Reporter, 11-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.


Uma das mais memoráveis palestras públicas de que eu participei foi oferecida pelo então reitor da Faculdade de Espiritualidade da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Ele admitiu perante a multidão que, depois de décadas de direcção espiritual com inúmeros padres e religiosos, ele chegou à conclusão de que o problema predominante deles é que “eles não sabem quem são”.
Mas estaríamos errados ao pensar nisso apenas como uma “questão da Igreja”. Aristóteles escreveu em “Ética a Nicómaco” que “as pessoas parecem buscar honra a fim de se convencerem da própria bondade”. Essa necessidade de validação externa explora uma tendência humana perene e jaz sob dezenas de termos e gradações de necessidade: respeito, deferência, popularidade, prestígio, fama e a clandestinamente solícita “Você já ouviu falar de mim?”. Isso se encontra em clubes de motociclistas e equipas de futebol, sociedades académicas e na indústria da música, nas prisões e nas hierarquias religiosas. A face da moeda muda, a linguagem é diferente, mas a dinâmica subjacente é idêntica. É a exposição mais clara dos mecanismos do ego que levam as pessoas a uma identidade. No vácuo do auto conhecimento, exibições externas destinadas a obter auto estima são inevitáveis.
Eu acredito que isso chega perto da raiz, mas não é sinónimo daquilo que o Papa Francisco identificou amplamente como o problema do clericalismo, que ele descreve como uma “cultura da morte” – esta última frase é chocante, dado o seu emprego por alguns católicos para denunciar categoricamente os males do mundo.
Uma cultura é uma rede de sentido e valorização pessoal. A cultura clerical depende de líderes que atraiam pessoas com disposição semelhante através das leis da atracção social, evocadas de diferentes maneiras desde Platão como o princípio “o semelhante busca o semelhante”.
A psicologia engendra teias de parentesco entre padres, bispos e grupos leigos igualmente dispostos, bispos e cardeais, leigos católicos ricos e think tanks. Eles sempre se encontram através da semelhança familiar, do que quer que seja.
O reconhecimento baseado no mérito e no capital social é uma coisa; um valor pessoal indistinguível da imagem pública é outra. Não apenas o clero, mas qualquer um, incluindo aqueles dentre nós que ganham o pão na academia, pode se sentir atraído pelas galerias de retratos dos nossos sistemas e pelos rituais protocolares de manobra e manutenção da honra.
Uma maneira de melhorar a minha auto estima é ocupar um escritório ou ter um título que diz: “Sou a imagem que você vê”. Essa imagem precisa de cuidado, protecção e promoção estratégica, como um político em campanha, ou como um actor de teatro cuja auto estima aumenta e diminui com os comentários sobre a sua última performance. Concessões morais acontecem quando o sistema religioso ratifica a minha identidade. Na pior das hipóteses, eu me torno um viciado em reconhecimento, insaciavelmente inquieto, afastando as qualidades que me tornam único em nome do refúgio temporário da validação externa. Jesus era menos poético: “Como é que vocês poderão acreditar, se vivem elogiando uns aos outros, e não buscam a glória que vem do Deus único?” (João 5, 44)? Essa é a paz que o mundo dá… e toma de volta.
A cultura hierárquica é a cenoura de ouro para os predispostos aos seus encantos. Em suas formas mais crassas, ele não apenas parece inquebrável, mas vem com uma falta de vergonha de tirar o fôlego em relação à sua exibida postura grotesca de direito de posse, seus ares aristocráticos e sua ambição cega. Em última análise, é uma escolha ser um certo tipo de ser humano, pois nesse recinto misterioso da liberdade pessoal continuamos preferindo valores menores, como a reputação, a valores superiores, como a dignidade. O status de alguém no sistema é percebido como sendo um servo segundo o coração de Deus.
A psicologia torna as pessoas incapazes de despertarem a si mesmas dos falsos valores que sustentam a auto imagem ilusória; um Rubicão interior é atravessado onde falta a qualidade da tentação, como algo com que eu deveria lutar. Depois de várias décadas, grande parte do “eu” foi investida de um modo específico de ser humano. Deus não vai interferir.
A verdade é que você não pode ser o garoto-propaganda do sistema religioso e um homem de Deus.
Numa elevação perversa do “eu”, o ministro clerical se esconde por trás da humildade simulada da servidão naquela que deve ser uma das inversões mais excêntricas do Evangelho. Ele perde a profundidade da investigação que alcança o sentido humanizador da doutrina e da moral, a sua vitalidade interna e a sua relevância ardente, presumindo que a invocação da autoridade – “A Igreja ensina isto e aquilo…” – pode ser afixada em qualquer tábua em seu ensino, como se as pessoas se submetessem a ele, com coração, mente e alma. Esse também é um gancho externo; persuasão por deferência presumida.
Na estrutura de pensamento de Francisco, a sua denúncia do clericalismo é frequentemente acompanhada pela valorização e acompanhamento dos pobres, que, a propósito, não servem a nenhum outro propósito dos ministros clericais do que fazer parte de sua estratégia de relações públicas.
É o companheirismo com aqueles que estão fora das nossas redes de influência que relativiza as moedas de honra do nosso sistema. Viciados em drogas e cidadãos idosos solitários não se importam nem um pouco com o meu artigo mais recente publicado ou em quais comissões eu estou. A deferência a que estou acostumado não é acessível, e, quando eu busco reconhecimento, eles não mordem a isca. Essa é uma kenosis que tira o meu ego de suas muletas e ilusões. A política de identidade da Igreja e a sua versão do “Game of Thrones” tornam-se óbvias em sua mesquinhez e paroquialismo. Nessa selva desorientadora, há agora um espaço para Deus chamar um novo “eu” à existência.
Como o trapista Thomas Merton escreveu certa vez, “as pessoas podem passar sua vida inteira subindo a escada do sucesso apenas para descobrir, quando chegam ao topo, que a escada está encostada na parede errada”. A tragédia com o clericalismo não é menor do que o advogado corporativo ou o magnata empresarial que conquistou o mundo inteiro, mas perdeu a própria alma; em outras palavras, eles perderam quem eles estavam destinados a se tornar.
A manifestação de Deus a Jesus, no seu baptismo, aponta para o padrão pretendido por Deus para todos nós. Como com Jesus, Deus esbanja o conteúdo primorosamente pessoal às nossas noções genéricas de dignidade, pressagiadas pela palavra geradora de vida “Você é…”. Se quisermos, o Deus Vivo pode dar à nossa dignidade o seu volume e massa, libertando-nos – lenta e minuciosamente, como é característico da morte de uma identidade espúria – das “honras mundanas” do materialismo de duas faces dos sistemas de honra da Igreja. Isso crucifica os nossos duplos autónomos que vivem por aquilo que nos agrada nos sistemas de reconhecimento e põe um fim aos compromissos morais que inevitavelmente vêm da necessidade de se encaixar a todo custo.
As leis da terra estão agora referindo-se àquilo que o Evangelho não podia, e, com certeza, o clericalismo não estaria recebendo o escrutínio que ele merece, se não fosse pela crise de acobertamento. Mas humilhação não produz conversão. A vergonha pública não nos tornará discípulos. Obedecer à lei não pode transformar o superego infantil numa consciência forte. Agora sabemos que é catastrófico quando o pastor usa as suas ovelhas e pasto para lhe dizerem quem ele é. O clericalismo não pode ser bajulado até chegar a essa margem

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