Os tempos que vivemos têm-se revelado penosos e de profunda incerteza para todos nós, quer enquanto cidadãos individuais, quer ainda enquanto agentes de uma economia global. É, porém, na vigência dos períodos mais aflitivos que, geralmente, reaprendemos a organizarmo-nos e redescobrimos formas alternativas para continuarmos a levar a nossa vida com a normalidade possível num quadro de emergência internacional.
É num contexto de urgência e necessidade de reduzir o impacto do novo coronavírus COVID-19 na sua atividade, que os empregadores têm adotado a modalidade do teletrabalho, cujo regime jurídico podemos encontrar nos artigos 165.º a 171.º do Código do Trabalho, como uma importante ferramenta pela manutenção dos postos de trabalho e funcionamento da empresa.
Aliás, por força do artigo 6.º do Decreto n.º 2-A/2020 de 20 de março, que procedeu à execução da declaração do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, passou a ser obrigatória, neste período de emergência, a adoção do regime de teletrabalho, independentemente do vínculo laboral, sempre que as funções em causa o permitam, durante o período em que vigore o estado de emergência.
Em que consiste afinal o teletrabalho?
De forma sucinta, e nos termos do disposto no artigo 165.º do Código do Trabalho, o teletrabalho consiste na prestação laboral realizada com subordinação jurídica (e nesta medida distingue-se de outras figuras potencialmente confundíveis, por exemplo, o trabalho no domicílio, em que não há subordinação jurídica), normalmente fora das instalações da empresa (não tem necessariamente de ser em casa) e mediante o recurso a tecnologias de informação e comunicação. São muitas as empresas que disponibilizaram já aos seus trabalhadores, telemóveis, computador portátil, acessos remotos, entre outras ferramentas que permitem a realização da prestação por via do teletrabalho.
O contrato de teletrabalho está sujeito à forma escrita, condição exigida tão somente para prova da estipulação deste regime de prestação de trabalho. Deve conter ainda, além da identificação das partes, atividade e período normal de trabalho, a propriedade dos instrumentos de trabalho, o responsável pela respetiva instalação, manutenção e pagamento das respetivas despesas de consumo e utilização, bem como a identificação da pessoa que o trabalhador deve contactar no âmbito da prestação laboral.
Até agora o teletrabalho era um recurso pouco utilizado e praticamente direcionado para situações específicas, como trabalhadores com filhos até três anos de idade ou trabalhadores vítimas de violência doméstica, a quem a lei expressamente atribui a possibilidade de desempenho das funções mediante teletrabalho, desde que as tarefas sejam compatíveis com esta modalidade de trabalho.
Porém, com a publicação do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, que instituiu medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus – COVID 19, e, mais tarde, com a declaração de estado de emergência à qual já nos referimos, o regime do teletrabalho foi «democratizado» a todos os trabalhadores (trabalhadores de serviços essenciais ficam excluídos), e o paradigma das relações laborais tradicionais alterou-se.
Nos termos do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, durante a vigência do referido diploma, «o regime de prestação subordinada de teletrabalho pode ser determinado unilateralmente pelo empregador ou requerida pelo trabalhador, sem necessidade de acordo das partes, desde que compatível com as funções exercidas». Resulta, pois, manifesto, que o recurso a esta forma alternativa de laboração não está condicionada ao acordo das partes, bastando que se mostre viável a sua execução, atenta a natureza das funções desempenhadas.
Procedimento e comunicações
Embora tal não resulte do regime especial previsto no identificado Decreto-Lei, consideramos ser de aplicar aqui o regime previsto no n.º 5 do artigo 166.º, pelo que a passagem, ainda que transitória por força da situação atual, para teletrabalho deverá ter subjacente documento escrito, pelo que, quer haja sido instituída por acordo (que como vimos não constitui condição essencial), quer haja sido determinada ou solicitada, respetivamente pelo empregador ou trabalhador, aconselhamos a que exista documento escrito suscetível de demonstrar o cumprimento da exigência do n.º 7 da norma do artigo 166.º – prova da prestação em teletrabalho.
Comunicação junto da Segurança Social
Além disso, e porque se trata de alterar, embora temporariamente, a modalidade do contrato de trabalho, cremos que os empregadores deverão comunicar à Segurança Social a respetiva alteração, nos termos do disposto no artigo 32.º do Código Contributivo, comunicação a fazer até ao dia 10 do mês seguinte àquele em que se verifique a alteração (artigo 8.º, n.º 1 do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011, de 03-01 na sua atual redação).
Comunicação junto da Seguradora
A Associação Portuguesa de Seguradores fez constar um comunicado no seu sítio eletrónicohttps://www.apseguradores.pt/pt/comunica%C3%A7%C3%A3o/not%C3%ADcias/2020/articleid/146/coronav%C3%ADrus-posi%C3%A7%C3%A3o-do-setor-segurador de que «Serão considerados como acidentes de trabalho, nos termos da legislação em vigor, os acidentes ocorridos no desempenho de funções em regime de teletrabalho, seja por indicação de autoridade pública ou da entidade empregadora. Lembramos as empresas que devem documentar o teletrabalho, nomeadamente identificando os trabalhadores, datas e horas autorizadas, e as respetivas moradas onde vai ser prestado o trabalho».
Assim, é nosso entendimento que empregadores deverão comunicar às seguradoras com quem têm contratualizado o seguro de acidentes de trabalho, o endereço onde os trabalhadores em regime de teletrabalho estão a desempenhar as suas funções.
Subsídio de refeição
Outra questão que muito se tem colocado neste domínio é saber se enquanto o trabalhador está a trabalhar em regime de teletrabalho mantém ou não o direito ao subsídio de refeição.
Podemos desde já adiantar, que esta situação não é pacífica.
Com efeito, sabemos que o Código do Trabalho não impõe o pagamento aos trabalhadores de subsídio de refeição/alimentação, sendo que o mesmo só será devido se existir Instrumento de Regulamentação Coletiva de Trabalho que a tal determine.
Porém, estando o trabalhador a receber subsídio de refeição e sendo agora alterada a modalidade do seu contrato de trabalho para regime de teletrabalho, prestado em casa, uma vez que o que se pretende com esta medida é o isolamento social, como fica a questão do subsídio de refeição? O trabalhador mantém ou não o direito a esta prestação?
Bom, cumpre desde já esclarecer que o subsídio de refeição, em regra, não integra o conceito de retribuição e constitui uma prestação paga pelo empregador ao trabalhador destinada a compensá-lo pelas despesas incorridas por este, pelo facto de o trabalhador ter de tomar a refeição fora de casa. Assim, sob esta perspetiva, estando o trabalhador a trabalhar em regime de teletrabalho, parece fazer sentido que o empregador cesse o pagamento do subsídio de refeição, uma vez que o trabalhador pode almoçar/jantar em casa.
Sucede, no entanto, que não podemos ignorar a norma do artigo 169.º do Código do Trabalho. De acordo com esta disposição legal, o trabalhador em regime de teletrabalho tem os mesmos direitos e deveres dos demais trabalhadores, estabelecendo-se o princípio da igualdade de tratamento, como corolário deste regime. Ora, daqui decorre que se o trabalhador antes auferia subsídio de refeição, não poderá o mesmo ser retirado ao trabalhador, pelo facto de o mesmo se encontrar agora em regime de teletrabalho.
Cremos que a solução a dar a esta questão deve ser avaliada casuisticamente e a resposta pode não ser única para todas as situações.
E no futuro?
As notícias que têm sido divulgadas nos últimos dias não antecipam uma rápida reposição da normalidade, antevendo-se um período duradouro de sacrifícios, aprendizagens e readaptação para todos.
Provavelmente o recurso nesta fase à modalidade do teletrabalho vai fazer-nos a todos perceber, depois de ultrapassado este momento, que o reajustamento dos modelos tradicionais laborais podem estar ao acesso de muitos e podem transformar o paradigma laboral que nos acomodamos a conhecer. Pode estar à vista uma pequena revolução a este nível e que pode até significar vantagens para ambas as partes, desde logo com a redução de custos fixos com o posto de trabalho, por parte do empregador e com a melhor conciliação da vida familiar com a vida profissional, para os trabalhadores.
Para já, encaramos esta mudança como a melhor forma de nos mantermos à tona nestes dias tão severos.
Conceição Soares, Advogada – Sócia da sociedade de advogados Brochado Coelho e Associados, Sociedade de Advogados, SP, RL; Docente convidada do Ensino Superior; Formadora na área do Direito do Trabalho e da Segurança Social. (www.brochadocoelhoadvogados.pt)
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