Com mais de 5 séculos de funcionamento, um dos arquivos históricos mais visitados do mundo continua a despertar fascínio e mistério.
Por Mirticeli Dias de Medeiros*
Santa Inquisição, Galileu Galilei, papas renascentistas e tantos outros assuntos. Por muito tempo, esses temas ocuparam as reflexões dos autores iluministas, os quais, sem ter acesso aos arquivos secretos do Vaticano até então, reconstruíram a história a partir de fontes externas. O mito de que “a Igreja Católica acreditava que a terra fosse plana”, por exemplo, surgiu em 1828 a partir da publicação de um romance chamado The life and Voyages of Cristopher Columber, de Washington Irving. O autor americano, tomando como base a visão cosmológica do monge grego Kosmas Indicopleustes, do século VI – autor completamente desconhecido na idade média – chegou à conclusão de que o mapa-mundi cristão elaborado pelo religioso representasse todo o pensamento da Igreja Católica a respeito do assunto: o que nunca foi verdade.
Tardiamente, no século XIX, o papa Leão XIII chegou à conclusão de que limitar o acesso ao arquivo histórico da Santa Sé prejudicaria a própria Igreja enquanto instituição, uma vez que cada qual poderia hipotisar os acontecimentos do passado pela falta de contato com os documentos. A historiografia pontifícia o considera um papa humanista por ter sido o primeiro líder máximo da Igreja Católica a publicar uma encíclica de cunho social, a Rerum Novarum, mas também por permitir que os estudiosos explorassem o famoso arquivo histórico da Santa Sé, cujas portas se abriram a todos os pesquisadores do mundo em 1881. Desde então, cabe ao papa autorizar a abertura de determinados fundos arquivísticos, os quais são divididos por pontificados e distribuídos em outras seções. No total, a Santa Sé possui 650 fundos arquivísticos que correspondem a 85 km de prateleiras repletas de papiros, pergaminhos e livros.
Como vimos recentemente, a última autorização oficial de abertura aconteceu no dia 4 de março deste ano, quando Papa Francisco anunciou que, a partir de 2020, os estudiosos poderão ter acesso a todos os documentos relacionados ao governo e à atividade pastoral de Pio XII, famoso por causa do seu suposto silêncio diante do Holocausto. Muitos historiadores aguardam respostas mais precisas a respeito da atuação da Igreja Católica durante a Segunda Guerra mundial, de modo a confirmar os reais motivos que levaram à omissão pública desse pontífice. Por outro lado, será possível oficializar, de uma vez por todas, que houve uma atuação concreta da Igreja Católica no salvamento de judeus, algo já confirmado por diversas fontes históricas do período.
Esse tom de mistério em torno do Archivum Secretum Apostolicum Vaticanum – Arquivo secreto apostólico vaticano –, protagonizado muitas vezes pela ficção, é exagerado, ouso dizer. A começar pelo nome “arquivo secreto”, que na tradução para a língua portuguesa transmitiu a ideia de “secreto” ou de “segredo”. A verdade é que, no latim medieval, “secretum” refere-se a privado ou pessoal. Portanto, se trata do arquivo pessoal ou privado do Romano Pontífice, na linguagem oficial. Sendo assim, na atualidade, não é justo interpretarmos que haja uma intenção de reter informação por parte da Santa Sé (como no passado), mas de uma certa lentidão na divulgação desses documentos, o que dificulta o trabalho de muitos pesquisadores. Para se ter uma ideia, em se tratando de acesso ao arquivo vaticano, teremos, a partir do ano que vem, dados até 1958, ano da morte de Pio XII. Depois disso, não teremos previsão a respeito do acesso ao fundo arquivístico de João XXIII, o sucessor do “pastor angélico”.
Tudo depende do estilo de governo do papa atual e se aquela determinada figura histórica, cujo legado será explorado pelo público acadêmico, de certa forma atenderá aos anseios do papado no presente. Abrir o arquivo de Pio XII, em um momento no qual Francisco almeja uma aproximação mais concreta com a comunidade judaica, sem dúvida alguma é bastante oportuno. Em 2006, Bento XVI já havia colocado à disposição dos historiadores o fundo arquivístico de Pio XI, com o intuito de mostrar ao mundo que esse pontífice, apesar das controvérsias a respeito de sua relação com o fascismo, foi um opositor ferrenho do nazismo e símbolo da autonomia e da soberania do Estado da cidade do Vaticano, criado em 1929 a partir do Tratado de Latrão. De certa forma, a Santa Sé acaba seguindo a tendência de todas as instituições: abre os arquivos cuja memória histórica já não possa ser manipulada pelos jogos políticos da atualidade.
*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé.
Todos querem uma sociedade justa. Nós lutamos por ela, Ajude-nos com a sua opinião. Se achar que merecemos o seu apoio ASSINE aqui a nossa publicação, decidindo o valor da sua contribuição anual.