Entre as muitas benemerências do cristianismo no campo social — particularmente a respeito das massas operárias — deve-se contar certamente esta: o ter sempre propugnado pela retribuição, com a qual são satisfeitas as exigências da justiça.
Enquanto que a ciência económica tradicional se limitou a descrever-nos e a definir o fenómeno do salário, a dizer-nos em suma o que é o salário do operário, a Igreja com os Santos Padres, com os Doutores, com os canonistas, com os sociólogos se ocupou de outra coisa bem diferente, ensinando-nos o que deve ser semelhante salário.
Em nenhum outro problema a economia amoral e associai foi obrigada a desmascarar todos os seus erros, como no do salário, o qual constitui o fulcro da distribuição, sendo normalmente o canal de maior corrente de riqueza.
A grande maioria dos economistas, vestidos com a camisa de forças do determinismo mecânico ou psicológico, cansaram-se durante muito tempo a fantasiar e a construir teorias sábias acerca de supostas e rígidas leis sobre o salário; sem, entretanto, notar que as soluções dos problemas acerca do salário serão sempre ilusórias, enquanto o trabalho for considerado como objecto e não como sujeito da economia; enquanto no âmago da ciência económica estiver uma coisa e não o homem, a quem aquela se deve subordinar.
Como as outras doutrinas do Catolicismo, também a doutrina do salário se desenvolve e dilata ao longo do caminho da história, à maneira dum rio que inicia o seu curso, primeiro muito modesto e escondido sob as ervas vicejantes e depois se espraia largo e majestoso para regar os prados e banhar as cidades.
O salário é, sem dúvida, tema antigo, mas que pulula de contínuo em toda a encruzilhada da evolução económica, e que, por isso, é conveniente recordar e examinar; hoje, sobretudo, em que o progresso da técnica e a mecanização industrial altera notàvelmente as relações que existem entre o capital e o processo produtivo.
A Igreja, sentinela sempre vigilante, nesta hora de tão graves perturbações sociais, não deixou de inculcar e esclarecer os grandes princípios da moral económica. Precisamente, numa das mais recentes mensagens sociais do Papado, na Divini Redemptoris de 19 de Março de 1937, Pio XI projecta um facho de luz sobre a mais delicada e discutida questão do salário, e precisamente sobre a natureza jurídica, isto é, sobre o título, em que se funda o salário familiar, para o qual se inclinam hoje tantas iniciativas particulares e providências do poder público.
A Encíclica de Pio X I contra o comunismo ateu não é só o pano fúnebre que mais cedo ou mais tarde se deverá estender sobre o sanguinário monstro soviético; mas é também o pendão triunfal que anuncia as futuras conquistas duma instituição jurídica que, fixando o eixo económico da família operária, estabelece e protege o equilíbrio e a ordem social. Mas voltemos às origens e sigamos os primeiros desenvolvimentos da visão cristã do salário.
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Nos livros sagrados podemos descobrir as primeiras afirmações, embora genéricas, da justiça do salário. As terríveis ameaças e as graves sanções dos textos sagrados contra aqueles que defraudam o trabalhador, ou, de qualquer maneira, lhe negam o salário, nascem do sentimento da justiça lesada: Ai daquele que edifica a sua casa sobre a injustiça que oprime o seu próximo sem causa, e não lhe paga o seu salário (‘).
Aquele que derrama sangue e o que defrauda o jornaleiro, são irmãos (f). Sobre a quantidade do salário, só se têm na Sagrada Escritura muito raras indicações e pouco precisas. Em todo o caso, a remuneração do trabalho não devia ultrapassar muito os limites da necessária subsistência quotidiana, quando a lei prescrevia que se pagasse ao menos à tarde, ao declinar do dia.
Pagar-lhe-ás no mesmo dia o preço do seu trabalho antes do sol posto, porque é pobre e com isso sustenta a sua vida(f). Ao escravo dava-se metade do que era concedido ao operário livre, talvez porque, habitando o escravo em casa do seu senhor, gozava de peculiares vantagens económicas que se consideravam como equivalentes a metade do salário normal.
Além disso, o que os senhores ofereciam ao escravo no momento em que ele recebia carta de alforria, podia ter o mesmo valor que metade dos salários recebidos no mesmo período de tempo pelo operário livre (4). Também no Novo Testamento o direito do trabalho à contra prestação retributiva é com decidido vigor proclamado nesta breve e clara sentença evangélica: O operário é digno da sua recompensa (5).
«Esta proposição, comenta Weber, é muito breve, mas cada palavra projecta grande luz sobre o nosso problema, isto é, sobre a atitude do Evangelho a respeito das condições materiais e os fins do trabalho (6).
Devemos notar, porém, que temos aqui uma proposição original… Esta proposição tem a sua génese só em Jesus Cristo, isto é, no seu coração e no seu espírito…
Tentou-se, mas inutilmente, descobrir uma sentença que reflicta a mentalidade dos Judeus. Mas esta não se encontra no Antigo Testamento, nem há qualquer provérbio da antiga sinagoga, que, de qualquer maneira, se lhe pareça. Não se pode atrbuir à literatura judaica. Que nos ensina esta proposição?
Ela, conclui Weber, quer indubitavelmente levantar bem alto a voz acerca do direito do operário à remuneração» (‘). As palavras de S. Paulo: Se alguém não quer trabalhar, também não coma, são um comentário a este princípio estabelecido pelo divino Mestre; como são uma consequência as expressões ardentes de S. Tiago: Eis que o salário dos trabalhadores, que ceifaram os vossos campos, o qual foi defraudado por vós, clama (contra vós), e o clamor deles subiu até aos ouvidos do Senhor dos exércitos (f). A fórmula do Salvador: O operário è digno da sua recompensa, afirma um direito e reconhece a dignidade pessoal do operário.
Por conseguinte, o salário que era para o paganismo o ferrete da escravidão — o salário ê o soldo da escravidão (4) — para o cristão é símbolo da sua suprema grandeza.
Esta sentença evangélica contém em germe uma profunda revolução, e o seu alcance construtivo no campo social atinge aquele mesmo que tem no sector político outra fórmula do mesmo Salvador: Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus(s).
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Além do reconhecimento do direito sagrado da actividade produtiva do homem não devemos procurar nos discursos de Jesus determinações que digam respeito a certos quesitos do salário.
Deve medir-se seguindo o critério das necessidades do operário? Há quem pense que na parábola dos vinhateiros, enquanto o senhor oferece a seus operários o mesmo dinheiro pelo trabalho quantitativamente desigual (‘), existe a norma para estabelecer o salário, que seria constituído pelas necessidades vitais do operário, mais do que pelo valor do trabalho. «Porque não será permitido, pergunta Lugan, ver reconhecido nesta igualdade de salário por trabalhos desiguais, o que deve ser essencialmente: a recompensa pelo gasto das forças e a satisfação das exigências da vida?
Não é a quantidade ou a qualidade do trabalho; não é a convenção entre o patrão e o operário que constitui a medida necessária do salário, mas a necessidade imprescritível do trabalhador. Visto que os braços que se oferecem ao senhor da vinha são muitos, é porventura ir contra os intentos da parábola, o considerar o dinheiro oferecido pelo dono da vinha como salário mínimo rigorosamente devido? A todos repete as mesmas palavras: Ide, e dar-vos-ei o que for justo. Poderia ter dado mais aos operários da primeira hora, mas não podia dar menos aos da última.
Era questão de justiça, sendo aquele dinheiro o preço dum dia de trabalho; apresentando-se outros sem trabalho, o senhor deveria também dar a estes o mínimo exigido… Ele é, pois, bom, não pela bondade de indulgência, mas sim pela da sujeição à verdade e à justiça» (f). (‘) Alguns operários foram enviados ao romper da manhã, outros cerca da terceira hora, outros à hora sexta e à hora nona. Não faltou quem fosse enviado para o trabalho à hora undécima. Esta interpretação não nos parece inteiramente conforme com a intenção clara que transparece desta e doutras parábolas semelhantes.
O divino Mestre quer aqui retratar o carácter do Pai, que tem a liberalidade régia e extrema bondade dum grande senhor, o qual nas relações económicas com os seus não sabe limitar-se à rígida e avara contabilidade mercantil do nem mais nem menos ou do tanto quanto.
Tal senhor, se o devedor não pode pagar no tempo prescrito, não oferece uma simples dilação, mas com gesto magnífico perdoa toda a dívida ainda que muito grande (’); e assim também, se tem de pagar o salário a seus operários, com a sua magnanimidade chega a não contar quantas horas a menos trabalharam alguns deles. Esta parábola é, evidentemente, semelhante à do filho pródigo na qual, se quer exaltar não a justiça mas a misericórdia de Deus Pai.
(Edição Religiolook, parte 1)
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