Começam a ser visíveis nas declarações dos responsáveis políticos, que gerem a crise da pandemia, sinais que evidenciam uma tendência para colocar os idosos (pessoas acima dos 65 anos) numa quarentena forçada.
Olhar para a sociedade portuguesa e estratificar as pessoas por idades, concedendo, a cada uma, um grau de liberdade “adequado” levam-nos a temer o aparecimento de uma sociedade higiénica (protofascista) onde os idosos podem ser o alvo, se não forem tidos em conta princípios de humanidade na regulamentação que há-de surgir.
Já nos bastavam as críticas e as pressões dos sectores mais liberais que consideram os idosos um “perigo para a subsistência da economia mundial”.
Devemos ter em conta que a transição demográfica leva a uma mudança na estrutura da população; por um lado, temos menos nascimentos enquanto há um aumento na longevidade que afecta mais pessoas (os idosos são mais velhos por mais tempo). À medida que nascem menos filhos, gerações mais velhas atingem a velhice: os avós têm menos netos, mas os netos têm mais avós e fazem-no por mais tempo. Em suma: nunca antes tão poucos netos tiveram tantos avós.
Essa mudança demográfica assusta-nos, e a partir de algumas perspectivas apresenta-se como uma ameaça ao sistema económico e social. Recordemos dois exemplos concretos: Christine Lagarde, Directora Geral do Fundo Monetário Internacional, referiu-se ao aumento da esperança de vida como um risco económico ao qual temos que reagir. Taro Aso, então ministro da Economia do Japão, deu um passo em frente (muitos, na verdade) quando, em 2013, disse que “os velhos devem apressar-se e morrer” (https://www.theguardian.com/world/2013/jan/22/elderly-hurry-up-die-japanese) para aliviar a pressão sobre os gastos de saúde.
Deve-se lembrar que Taro Aso tinha 72 anos na altura, por isso não está claro para nós de que idosos estava a falar ou quem é velho de acordo com os seus critérios. Hoje ele tem 80 anos e, além de ser um ministro das finanças, é vice-primeiro-ministro do governo japonês. A visão negativa que se tem da velhice parece aplicar-se no abstrato, e sempre para fora.
“Nós queixamo-nos da velhice, mas queremos que nossos avós vivam muitos anos”.
As percepções de Aso ou Lagarde são exemplos simples dos estereótipos que continuam a prevalecer quando se fala de velhice. Isto está relacionado com o tipo de estudos que são realizados: se é verdade que o aumento da proporção de pessoas idosas tem suscitado maior interesse, a maioria das análises centra-se nas questões económicas, apresentando-as como um fardo para as arcas públicas que conduz inevitavelmente à concorrência e ao confronto intergeracional e não como uma etapa de oportunidades.
Estas percepções deixam de lado não apenas a grande conquista (precisamente económica e social) que é o alongamento da esperança de vida em condições de saúde. Sem dúvida, o aumento da esperança de vida é a melhor conquista social que temos hoje. Recordemos que o aumento da esperança de vida não significa apenas que os idosos vivem mais tempo; significa também que os jovens morrem menos.
Dito isto, e pensando nisto à luz da pandemia de hoje, verificamos que só uma leitura política de base humanista e comunitária (o papa Francisco lembrou que ninguém se salva sozinho!) pode levar os nossos decisores a definir um enquadramento político mais solidário entre gerações e mais generoso perante as soluções institucionais que no nosso país acolhem os idosos e assim prestam um serviço essencial às famílias portuguesas.
Mas temos de preparar o futuro, com atenção analítica para verificar as consequências políticas que esta crise de saúde pública vão causar na decisão eleitoral dos mais velhos em actos futuros. No silêncio do confinamento, no diálogo com os “seus botões”, os nossos velhos estão a construir uma leitura da realidade que provavelmente não vão partilhar com ninguém e que se vai tornar visível quando formos chamados a escolher o novo governo.
Daí que seja fundamental que os partidos políticos incluam na sua narrativa política (já não digo ideológica) uma perspectiva de esperança para este sector da população. Uma tarefa que não sendo de direita nem de esquerda, deve ser abrangente, e que tem de apresentar soluções de esperança e de inclusão respeitando aqueles que carregam consigo a memória da Nação e que em cada caso individual são expressão de uma sociedade civilizada e garantidamente aberta e que temos vindo a construir desde 1974 no nosso país.
Somos um país muito pobre, basta referir a dívida pública existente que limita os governos na sua acção diária na procura de uma sociedade equilibrada e justa. Todos sabemos das limitações orçamentais que são objectivas e falam por si. Também conhecemos para onde vai o esforço de todos que vivem e amam Portugal.
É dentro deste enquadramento que teremos de desenhar uma solução. Devemos pedi-la a todos os partidos políticos. E devemos construí-la com a ajuda e opinião dos portugueses que, através das suas iniciativas individuais e colectivas, sustentam a rede social existente no nosso país.
Refiro-me sobretudo à extraordinária capacidade instalada em Portugal que verificamos em todo o território sob a forma de IPSS, misericórdias, paróquias e outras ONGs que diariamente sustentam e promovem a coesão comunitária, permitindo às famílias oferecer aos seus idosos um solução humanista e estruturada.
Temos de sublinhar que a resposta dada por esta rede social coloca Portugal como líder mundial na atenção humanista aos mais velhos.
Mas esta crise de saúde pública também nos lembra que a solução construída até agora precisa de ser reconfigurada: é preciso garantir uma boa relação deste sistema social com o sistema de saúde. Um caminho que é preciso percorrer e que terá implicações na estruturação das instalações e na reconfiguração das actividades diárias, sobretudo nos lares residenciais.
A rede social existente também nos mostra a extraordinária capacidade dos dirigentes e trabalhadores que nessas instituições se colocam na linha da frente para enfrentar os desafios que nos surpreendem. Foi assim há quinhentos anos com a criação das misericórdias, há duzentos anos com as mutualidades, é assim, sobretudo depois de 1980, que se expandiram as IPSS em todo o território português. Bendito o país que se construiu neste sector, onde encontramos o que há de melhor como expressão humanista.
Mas há decisões que terão de ser tomadas e que se prendem com a liberdade dos nossos idosos e a garantia da sua segurança em termos de saúde pública. O legislador terá de tomar decisões que merecem reflexão seguida de uma acção humanista, integradora e promotora do bem-estar dos nossos concidadãos mais velhos.
Se em outros tempos pedimos “imaginação ao poder”, estamos agora no tempo em que ela é muito precisa, de modo a não criar guetos sociais. Estarão os nossos partidos políticos preparados para desenhar uma solução equilibrada, democrática e socialmente justa que a todos integre e ninguém discrimine?
O desafio está aí. Precisamos de coragem e lucidez para enfrentar as dificuldades respeitando quem lutou por nós. Eles vão votar nas próximas eleições legislativas. Tenham isso em conta. E provavelmente vai ser um voto discreto mas eficaz ao traçar a linha num horizonte criado e desenhado por nós.
Texto: Arnaldo Meireles, jornalista editor de sociedadejusta.pt
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