Um número que ajuda a explicar o aumento da inflação (em Portugal 5,2 e em Espanha 9,8) e que em Itália levou o primeiro-ministro Mário Draghi a explicar aos seus eleitores que estão perante o dilema de escolher entre a “paz europeia” e o “conforto do ar condicionado” (no inverno e no verão) movido a gaz russo.
Isto num mundo globalizado a partir do ano 2000 e que desenhava uma sociedade aberta de comunicação plena, cheia de conforto.
Surpreendidos com a crise bancária (2008), abalados com a pandemia do COVID (2021-2022) e a guerra na Ucrânia (Fevereiro de 2022) com cinco milhões de desalojados/refugiados, encaramos soluções de circunstância, de natureza precária, com um pessimismo crescente sobretudo para aqueles que se preocupam em saber que tipo de sociedade estamos a construir para os nossos filhos e netos.
Esta precaridade não augura nada de bom, até por verificarmos que os alicerces que sustentam o desenvolvimento global são muito frágeis, como prova a nossa história recente.
A Europa das Ideologias
Nos anos sessenta do século passado, vivemos a turbulência das ideologias numa dicotomia geral entre aquelas que considerávamos humanistas (personalistas) e outras que apelidávamos de colectivistas. Era o debate saído de segunda guerra mundial, com a economia a reagir ao devaste dos principais países europeus.
Personalistas europeus deram os primeiros passos na criação da actual Comunidade Europeia depois de criarem organismos internacionais orientados para a economia das nações; detentores do poder a leste promoveram uma economia planeada de Estado. Ficou a Europa – do Atlânticos aos Urais – com dois modelos distintos de desenvolvimento.
O desenvolvimento económico da chamada Europa Ocidental levou os seus líderes e conselheiros editoriais a proclamarem o “fim das ideologias”, perante a “democracia de sucesso” nascida da globalização e do livre comércio. A ilusão da livre circulação foi o perfume para acolher sem crítica as decisões da economia.
Hoje vemo-nos abraçados – sem questionar – o capitalismo que nos endivida e condiciona as decisões de quem nos lidera, propondo como mundo unidimensional aquele que é desenhado pela lógica militar que nos quer convencer da inevitabilidade do apocalispe.
A sociedade aberta e os seus inimigos
Karl Popper – um professor austro-britânico – foi sempre um vigoroso defensor da democracia liberal e dos princípios da crítica social que ele chegou a acreditar tornar possível uma florescente sociedade aberta. A sua filosofia política abraça ideias de todas as principais ideologias políticas democráticas e tenta reconciliá-las, a saber, socialismo/social democracia, libertarianismo / liberalismo clássico e o conservadorismo.
E editou em 1974 – ano da sua morte – o livro “A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos”. Convém verificarmos quem são hoje os inimigos da sociedade aberta e portanto inimigos da democracia, dado que o nosso mundo evoluiu e já não faz sentido pensar na dicotomia capitalismo-comunismo, assunto que interessava esclarecer a Popper, ele que entretanto fora comunista e depois se tornou combatente da sua filosofia originária.
O capitalismo da nossa desgraça
É certo que a democracia vista pelos olhos europeus e sobretudo o seu funcionamento constitui o melhor modelo até hoje criado de governação dos povos e de nações. A queda do muro de Berlim e a Perestroika na União Soviética, colocaram, em tese, todos os países europeus (sim a Rússia é um país europeu) no mesmo caminho democrático. E experiências foram feitas, com as consequências conhecidas.
Independentemente das soluções democráticas adoptadas apenas uma “ideologia” de poder subsistiu: o capitalismo, distinguindo-se aqui o capitalismo da economia e o capitalismo de estado, mas todos dentro das regras de construção de uma sociedade onde a criação de moeda se tornou a indústria predominante; no capitalismo da economia com benefícios para os investidores, no capitalismo de estado, com benefício para os detentores do poder (ver caso da Rússia e China).
O financismo como lógica do capitalismo
Ao contrário de outras ideologias, verificamos que o capitalismo tem uma regra base de funcionamento que dispensando as ideias (e o debate entre elas) apenas cria e destrói moeda. Um mecanismo quase automático que mesmo dispensando as pessoas causa oscilações de valor. Moeda que tem existência própria – sem propriedade conhecida – se mexe (sobe e desce) e declara guerras indefinidas de surpresa de acordo com a medida que faz da oferta e da procura.
Oscilações e decisões que dispensam a vontade dos governos, a opinião dos eleitores/consumidores mas que simplesmente acontecem, com a inevitabilidade da chuva ou de um dia de sol.
Por território tem o mundo inteiro no caminho da “criação de valor” e onde desencadeia “tempestades” para “ajustar” as tendências da oferta e da procura.
Olha para a guerra, agora na Ucrânia, outrora noutros lugares, e vê “oportunidades de investimento” vendidas a juros altíssimos aos seus clientes-especuladores.
Dança em roda, a favor dos mesmos; e olha para o céu como limite que desafia dado que alimentado pela inabalável confiança que a elipse do progresso não tem fim.
E as pessoas, senhor?
Saudades portanto dos ideais da revolução francesa (1789), dos humanistas europeus que sonharam, desenharam porque desejaram, uma sociedade baseada nas pessoas – princípio e fim da sociedade e por isso do direito construído. Uma sociedade aberta, motivada pela livre opinião que cresce com as diferenças e nelas encontra factores de criatividade. Um sociedade que não se deixa enganar porque informada da mais valia que a liberdade nos dá.
Não sei qual será, no futuro próximo, o caminho a percorrer pelos “ismos” da moda. Mas não acredito em nenhum – todos encerram uma visão totalitária, de normalização de comportamentos e de subjugação ao interesse de momento. Todos inimigos da liberdade e da vontade comum de vivermos debaixo do mesmo céu azul.
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Por Arnaldo Meireles
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