Divulgados oralmente ou em forma de cartas, os textos do Papa Francisco, falecido em 21 de abril, aos 88 anos, constituem um património intelectual e doutrinário de primeira ordem. Com um estilo direto, imaginativo e, às vezes, professoral, eles foram muito além dos círculos de prática. O seu ponto comum é a dignidade do homem na sua condição mais humilde.
Evangelii gaudium – “A alegria do Evangelho” (2013)
“A Alegria do Evangelho” é o primeiro grande texto do Papa Francisco; ele utiliza ali um pensamento pessoal. O documento fornece as principais chaves para a compreensão do seu pontificado, ao mesmo tempo que oferece aos fiéis uma meditação sobre o mistério da vida cristã de grande profundidade. Trechos dos parágrafos 273 e 274.
A missão no coração do povo não é parte da minha vida, nem um ornamento que eu possa deixar para trás, nem um apêndice, nem um momento da existência. Ela é algo que não posso arrancar do meu ser se não quiser me destruir. Tenho uma missão nesta Terra e é por isso que estou neste mundo.
Devo admitir que estou marcado pelo fogo desta missão de iluminar, abençoar, animar, aliviar, curar e libertar. Aparece o enfermeiro na alma, o professor na alma, o político na alma, aqueles que decidiram, no fundo, estar com os outros e para os outros. Entretanto, se uma pessoa coloca seu dever de um lado e sua vida privada de outro, tudo se tornará triste, e ela viverá constantemente buscando gratificação ou defendendo seus próprios interesses. (…)
Para compartilhar a vida das pessoas e doar generosamente, devemos reconhecer que cada pessoa é digna de nossa devoção. Não é pela sua aparência física, nem pelas suas habilidades, nem pela sua linguagem, nem pela sua mentalidade, nem pelas satisfações que nos dá, mas sim porque é obra de Deus, sua criatura. Ele o criou à sua imagem e ele reflete algo de sua glória. Todo ser humano é objeto da ternura infinita do Senhor, que habita em sua vida.
. Laudato si’ (2015)
Esta encíclica dedicada à crise ambiental é destinada a todos; O Papa fala da Terra como nossa casa comum, da qual todos devem cuidar. Este documento tornou-se imediatamente um marco; Foi lido, recebido e apreciado pela maioria dos cientistas e líderes políticos e econômicos do mundo, embora não seja um texto de compromisso. Assim como seu autor, ele é apaixonado e clama abertamente pela conversão por meio do novo conceito de “ecologia integral”. Trechos dos parágrafos 139 e 169.
Quando falamos de meio ambiente, estamo-nos referindo, em especial, a uma relação que existe entre a natureza e a sociedade que a habita. (…) . As razões pelas quais um lugar está poluído exigem uma análise de como a sociedade funciona, a sua economia, o seu comportamento, as suas formas de entender a realidade. Dada a escala das mudanças, não é mais possível encontrar uma resposta específica e independente para cada parte do problema. É fundamental buscar soluções integrais que levem em conta as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas crises separadas, uma ambiental e outra social, mas uma única e complexa crise socioambiental. As possibilidades de soluções exigem uma abordagem abrangente para combater a pobreza, restaurar a dignidade dos excluídos e, simultaneamente, preservar a natureza. (…)
No que diz respeito às mudanças climáticas, infelizmente o progresso tem sido muito fraco. Reduzir os gases de efeito estufa exige honestidade, coragem e responsabilidade, especialmente dos países mais poderosos e poluentes. (…) As negociações internacionais não podem progredir significativamente devido à posição de países que colocam os seus interesses nacionais acima do bem comum geral. Aqueles que sofrem as consequências que tentamos esconder se lembrarão dessa falta de consciência e responsabilidade. (…) Nós, crentes, não podemos deixar de pedir a Deus progressos positivos nas discussões atuais, para que as gerações futuras não sofram as consequências de adiamentos imprudentes.
. Amoris laetitia (2016) e Fiducia suplicans (2023)
Um tema que permeia todo o pontificado, a Divina Misericórdia é para Francisco uma chave para pensar sobre casais e famílias. Diante dos desafios impostos pela mudança de comportamentos, a exortação apostólica Amoris Laetitia vem desde 2016 mobilizando o novo modo de ser da Igreja: colocar-se em posição de escuta para discernir as situações, longe de uma atitude de descaso. Trechos dos parágrafos 49, 79, 298 e 300.
“Nas situações difíceis vividas pelos mais necessitados, a Igreja deve preocupar-se sobretudo em compreendê-los, consolá-los, integrá-los, evitando impor-lhes uma série de normas, como se fossem uma rocha, com o efeito de que se sintam julgados e abandonados justamente por esta Mãe que é chamada a cercá-los da misericórdia de Deus. (…)
Ao mesmo tempo em que se exprime com clareza a doutrina, é necessário evitar juízos que não levem em conta a complexidade das diversas situações; Também é preciso estar atento a como as pessoas vivem e sofrem por conta de sua condição. (…)
Pessoas divorciadas que entram em uma nova união, por exemplo, podem se encontrar em situações muito diferentes, que não devem ser categorizadas ou confinadas em afirmações excessivamente rígidas, sem deixar espaço para um discernimento pessoal e pastoral adequado.
Se tivermos em conta a inumerável diversidade de situações concretas, (…) podemos compreender que não devemos esperar do Sínodo ou desta Exortação uma nova legislação geral de género canónico, aplicável a todos os casos. O que é necessário é um novo incentivo ao discernimento pessoal e pastoral responsável de casos particulares. (…)
Em dezembro de 2023, a publicação de Fiducia supplicans, texto assinado pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, com o acordo do Papa, mas não dele, marca um desenvolvimento. Muito bem recebido nos países ocidentais, exceto entre o público conservador, foi uma supresa para a Cúria Romana e muitos episcopados. Trecho do parágrafo 31
É possível abençoar casais em situação irregular e casais do mesmo sexo, de uma forma que não deve ser ritualmente fixada pelas autoridades eclesiásticas, para não criar confusão com a bênção própria do sacramento do matrimónio. Nesses casos, a bênção é dada (…) àqueles que (…) não reivindicam a legitimidade de sua própria condição, mas pedem que tudo o que é verdadeiro, bom e humanamente válido em suas vidas e relacionamentos seja investido, curado e elevado pela presença do Espírito Santo. Essas formas de bênção expressam uma súplica a Deus. »
. Fratelli tutti (2020)
Ao longo de seu pontificado, Francisco continuou a iniciar processos para que as pessoas se pudessem encontrar. O horizonte do seu pensamento é a fraternidade, que assume várias formas: respeito pelas religiões, ecumenismo… Nesta encíclica ele desenvolve a ideia de amizade social, em nome da qual quer despertar as consciências que adormecem no conforto ou na mediocridade. O seu pensamento profundo permite-nos entender as suas várias posições sobre questões candentes, como conflitos armados. Trechos dos parágrafos 6, 112, 113, 217, 218 e 261
Ofereço esta encíclica social como uma modesta contribuição à reflexão para que, diante das diversas formas atuais de eliminar ou ignorar o outro, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e de amizade social que não se limite às palavras. (…)
Existe uma expressão latina: bene-volentia , que indica querer o bem do outro. É um forte desejo pelo bem, uma propensão por tudo que é bom e excelente, que leva alguém a preencher a vida dos outros com coisas belas, sublimes e edificantes.
Sobre este assunto, volto a salientar com tristeza que “já há demasiado tempo que estamos em degradação moral, zombando da ética, da bondade, da fé, da honestidade. Chegou a hora de perceber que esta superficialidade alegre pouco nos serviu”. (…) Voltemos à promoção do bem, para nós e para toda a humanidade, e assim caminharemos juntos para um crescimento autêntico e integral. Toda sociedade deve zelar pela transmissão de valores, pois, do contrário, transmite-se o egoísmo, a violência, a corrupção em suas diversas formas, a indiferença e, em última análise, uma vida fechada a toda transcendência e emparedada em interesses individuais.
A paz social é difícil de construir; é um ofício. (…) Integrar as diferenças é muito mais difícil e lento, mas é a garantia de uma paz real e sólida. (…) O bom é criar processos de encontro, processos que construam um povo capaz de acolher as diferenças. Vamos equipar nossas crianças com as armas do diálogo! Vamos ensinar-lhes a boa luta do encontro! Isso envolve o esforço de reconhecer o direito do outro de ser ele mesmo e de ser diferente.
Toda guerra deixa o mundo pior do que o encontrou. A guerra é sempre um fracasso da política e da humanidade, uma rendição vergonhosa, uma derrota diante das forças do mal. Não vamos nos deter apenas em discussões teóricas, vamos tocar nas feridas. (…) Prestemos atenção à verdade destas vítimas de violência, olhemos a realidade através dos seus olhos e ouçamos as suas histórias com o coração aberto. Dessa forma, seremos capazes de reconhecer o abismo do mal que está no coração da guerra, e não seremos perturbados por sermos chamados de ingênuos por termos escolhido a paz.
. Praedicate evangelium, a constituição apostólica sobre a Cúria Romana e o seu serviço à Igreja no mundo (2022)
Este texto, desconhecido do grande público, está destinado a ter um impacto duradouro na Igreja porque diz respeito à sua organização. Ela responde a um pedido urgente dos cardeais durante as discussões antes da eleição papal em 2013.
A reforma da Cúria era esperada há décadas. Aconselhado por um colégio de nove cardeais (oito na sua criação), Francisco queria aprender as lições do Concílio Vaticano II e as práticas institucionais que se seguiram. A palavra sinodalidade usada nos primeiros parágrafos é em si mesma emblemática da reforma. Trechos dos parágrafos 1 a 10.
“A Igreja cumpre o seu mandato sobretudo quando testemunha, com palavras e obras, a misericórdia que ela própria recebeu gratuitamente. (…) Agindo assim, o Povo de Deus cumpre o mandamento do Senhor que, ao pedir-lhe que anuncie o Evangelho, o exorta a cuidar dos seus irmãos e irmãs mais frágeis, doentes e sofredores. (…)
É no quadro da natureza missionária da Igreja que se situa a reforma da Cúria Romana. (…) (A) vida de comunhão dá à Igreja o rosto da sinodalidade : uma Igreja de escuta mútua, na qual todos têm algo a aprender. O povo fiel, o Colégio Episcopal, o Bispo de Roma, cada um à escuta dos outros; e todos à escuta do Espírito Santo, “o Espírito da Verdade” (Jo 14,17), para saber o que Ele diz às Igrejas (Ap 2,7).
Esta sinodalidade da Igreja será então entendida como o “caminhar juntos” do rebanho de Deus pelos caminhos da história para encontrar Cristo Senhor. (… ) é impossível não levar isso em conta na atualização da Cúria. A sua reforma deve, portanto, prever a participação de leigos, homens e mulheres, inclusive em funções de governo e responsabilidade.
A sua presença e participação – leigos, homens e mulheres – são de facto indispensáveis, porque cooperam para o bem de toda a Igreja e, através da sua vida familiar, do seu conhecimento das realidades sociais e da sua fé que os leva a descobrir os caminhos de Deus no mundo, podem oferecer contributos significativos, especialmente quando se trata da promoção da família, do respeito pelos valores da vida e da criação e do Evangelho como fermento das realidades temporais e do discernimento dos sinais dos tempos. »
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