Ana não se conforma. Pela primeira vez, que se lembre, ir ter que passar o ano em casa, com o marido e o gato… Nunca, nunca na vida! Bem basta o que basta, desde o fim do verão não há socego, a levar-lhe o saco de água quente à cama, quando não também o jantar, ou há-de ser das costas, ou constipado ou alguma coisa que comeu e lhe fez mal…
“Nos Santos Populares também fomos e não te queixaste, a cinco minutos de casa, nem tanto…!” Também logo havia de ter acontecido isto. Para se comer dentro do clube só com máscara e no máximo cinco em cada mesa. Mas servem na esplanada. E a ceia a partir das 9h da noite, se isto tem algum jeito.
“Fazíamos assim: lanchávamos bem, mais tarde, e a seguir íamos para lá…”. O marido de Ana torce-se na cadeira, encasacado até às orelhas, cachecol e boné a rematar. Bem se lembra ainda do frio que rapou em Junho, lá de cima da serra vem sempre vento, quanto mais em Dezembro e com o gelo que está. Não responde. Não há dia nenhum em que ela não se gabe, que boa pele, dizem as amigas, quem diria que já és avó.
E as caminhadas… de dar com ele em doido, faça chuva ou sol. Já que o ginásio fechou, temos mesmo é que manter o ritmo, ouve-lhe ele dias a fio. E, afinal, nem é muito mais nova, teve sorte. E não é de se ralar por tudo e por nada, cá está quem o faça por ela…
“Mas olha lá, não queres mesmo ir? Ficamos a fazer o quê, a implicar um com o outro? E a ver a bodega da televisão? Isso fazemos nós todos os dias…” Enrosca-se mais na cadeira, não dá troco.
Responder para quê, já sabe em que vai dar aquilo tudo, responda ou não. Se ao menos conseguisse que lhe aliviasse a dor na perna, oxalá não seja outra vez ciática, o médico disse que podia repetir. E o frio a entrar pela lona da esplanada, sem dó nem alívio. Ir lá para dentro nem pensar: “Havia de ser eu, a filha da minha mãe, a ter de pôr uma máscara. Velhos já não tenho e não há mal que se me pegue”, já lhe adivinha o discurso que aí viria.
“Olha, se não queres falar não fales, fica-te para aí. O melhor era ires viver numa caverna, aí não precisavas de falar. Rais parta o homem!” Levanta-se e vai à tabacaria comprar três raspadinhas. Pode ser, já agora, no meio de tanta chatice… Começa a raspar, o cabo da colher é melhor, com a moeda rasga-se tudo. Compara os números, verifica de novo. Nada. Sorte a minha. Agora, com os filhos criados, que já podia aproveitar alguma coisinha e é só isto, só me saem duques. E dos bons.
“Então, ainda não abres bico? Vá lá, anima-te um bocadinho homem, parece que te morreu alguém. Dói-te alguma coisa? ” Ela, numa de conciliadora. “Estou tão neura…”, continua, “Triste, triste, sem saber porquê… nem com as raspadinhas tenho sorte. Que vida a minha, que mal fiz eu a Deus?!”
E pronto, está feito. Já sabe de cor o que aí vem. Pode ser que esta noite o remédio faça efeito e a perna o deixe dormir… Também a tempestade, afinal, parece que não vem, cada vez se enganam mais nas previsões. Por isso talvez o frio amaine, com as mantas e os aquecedores há-de se aguentar melhor na esplanada…No fim de contas, é só a cinco minutos de casa.
Margarida Chagas Lopes, autora Grupo Privado Sociedade Justa
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