“Nessas coisas pequenas está a força de manter os soldados unidos e confiantes, e essa é a primeira razão de qualquer vitória”. (Discorsi, III, 33) Maquiavel.
Para Maquiavel, isso é mais profícuo ainda se os fundadores da nova religião forem de uma língua diferente. Para justificar tal afirmativa, cita a relação entre cristãos e o paganismo, quando aquele aboliu todas as suas instituições e cerimónias deste, o que apagou também a memória da antiga teologia utilizada pelo paganismo.
Segundo o filósofo, a lembrança dos grandes homens não foi destruída pelo cristianismo com igual êxito, o que se deveu, para Maquiavel à manutenção da língua latina. Porém, segundo o filósofo, se o cristianismo tivesse podido escrever numa língua diferente do latim, não haveria memória alguma dos acontecimentos passados. (Discorsi, II, 5).
Contudo, Maquiavel é consciente de que esse movimento não foi somente do cristianismo, mas que o que ele fez com o paganismo, este também o fez com as religiões que vieram antes dele. De alguma forma, podemos dizer que esse movimento é frequente na história das cidades e das dominações.
Como último exemplo dessa relação entre religião e destruição da cultura, Maquiavel cita a Toscana que “era poderosa, cheia de religião e virtù, tinha seus costumes e sua língua pátria, e tudo foi extinguido pelo poderio romano. Assim, conforme se disse, dela só ficou a memória do nome” (Discorsi, II, 5).
Neste ponto, uma consideração se faz digna de nota. Apesar de Maquiavel ter uma visão bastante crítica da religião como destruidora das culturas, também percebe que essa mesma religião se torna importante para a definição do próprio povo e da forma como se relaciona entre si e o mundo. Nesse sentido, a religião é também um instrumento de fortalecimento e até mesmo de manutenção da cultura de um povo.
Embora Maquiavel não trabalhe explicitamente tal tema em seus Discorsi, acreditamos que tal leitura seja possível, estando até mesmo pressuposta na própria argumentação de nosso autor.
As culturas têm em si um elemento religioso importante, sendo esse mesmo aquilo que as sustentam. Religião e cultura, dessa forma, não estão separadas entre si, de maneira que uma seja externa a outra, antes, ambas se mostram como reflexo mútuo.
Uma religião é fruto de sua cultura assim como a cultura é fruto de determinado ambiente religioso. Essa retroalimentação é importante para se considerar a força que a religião possui, sendo construtora, mantenedora e, segundo Maquiavel, destruidora da cultura de um povo.
A última consideração feita por Maquiavel nos seus discursos a respeito da relação entre religião e política encontra-se no livro III, no capítulo 33. Nesse capítulo, Maquiavel, falando sobre a necessidade de o exército ter confiança em si mesmo e no seu comandante, retoma o fato de que os romanos utilizavam a religião para inspirar seus exércitos, por meio dos auspícios que estavam na nomeação dos cônsules, convocação das tropas, divisão do exército, bem como para decidir os momentos oportunos da batalha. (cf. Discorsi, II, 33)
Assim, os comandantes cumpriam essas formalidades por estarem convencidos de que os soldados seriam derrotados caso não ouvissem que os deuses estavam a seu lado. Menciona também as palavras que Tito Lívio atribuiu a Ápio Cláudio, que se queixava do orgulho e imprudência dos seus tribunos e alegava que devido a eles os auspícios perdiam influência, assim como as demais instituições religiosas:
Que eles zombem agora das religiões. Que interessa se um frango não come, se ele demora para sair da gaiola, se um pássaro grasnou? São coisas pequenas; mas não desprezando essas coisas pequenas os nossos antepassados engrandeceram esta república (Discorsi, III, 33).
Por fim, atesta que “nessas coisas pequenas está a força de manter os soldados unidos e confiantes, e essa é a primeira razão de qualquer vitória”. (Discorsi, III, 33).
Com isso em mente, podemos perceber que o pensamento de Maquiavel, dentre outros, pode ser uma boa luz na nossa tentativa de compreender, na atualidade, a estreita relação entre religião, política e a busca do poder.
Fabrício Veliq
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