Com a tomada de posse pela segunda vez do poder nos USA por Trump uma informação clara foi percebida na América: “Os religiosos estão de volta”. Foi assim que muitos observadores analisaram a segunda posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos da América. A direita cristã retornaria com força do outro lado do Atlântico. Apoiado por muitos evangélicos, ele conta cada vez mais com a adesão de apoiantes católicos.
Esses cristãos conservadores estão determinados a reencantar a América, na versão Maga, Tornar a América Grande Outra Vez, como se se tratasse de uma missão “messiânica”. Talvez sinal disso tenha sido a invocação do Cardeal Timothy M. Dolan, Arcebispo Católico de Nova York, e do pastor evangélico Franklin Graham, da Associação Evangelística Billy Graham.
Mas por trás da exibição, tudo sugere que não estamos exatamente no meio de uma repetição da eleição de 2016. Um primeiro elemento a levar em conta é a contínua secularização da sociedade, marcada pelo crescimento contínuo de “nones”, ou seja, pessoas que se declaram desfiliadas de qualquer filiação religiosa.
Um segundo ponto a considerar é a crise interna, quase sem precedentes do outro lado do Atlântico, do evangelicalismo branco, marcada por uma hemorragia de fiéis, especialmente entre os jovens. Político astuto, Trump não deixou de observar esses acontecimentos. Ele entendeu que se confiasse principalmente em nacionalistas cristãos, perderia a eleição.
Estas tendências já eram visíveis em 2006 quando o ensaísta Ryan Sager (1) descreveu, não sem perspectiva visionária, a “batalha pelo controlo do Partido Republicano” entre evangélicos e libertários.
Nessa altura explicava: “evangélicos (brancos) , focados na normatividade religiosa, e libertários, focados na liberdade individual, compartilham lutas, incluindo o anticomunismo”. Mas também lembrava que “os libertários sempre tenderam a ver os conservadores sociais (evangélicos) como disponíveis para jogar a Bíblia na cabeça dos descrentes na primeira oportunidade, enquanto os conservadores sociais sempre tenderam a ver os libertários como viciados em drogas e adoradores do diabo”.
A batalha entre nacionalistas cristãos e libertários será retomada ou manter-se-á a aliança?
É muito cedo para dizer, mas uma coisa é certa: enquanto líderes evangélicos como a neocarismática Paula White dominaram a campanha de 2016, é o libertário Elon Musk que inegavelmente emerge como o vencedor do casting republicano durante a campanha de 2024: o elefante na sala agora é ele, não sem conotações (neo)messiânicas. Lançando um desafio aos cristãos, divididos entre a tentação da aliança, o risco da exploração e o confronto profético.

FRANÇA – mudanças no protestantismo
Embora o número de protestantes na França permaneça o mesmo (cerca de 2% da população), a proporção de cristãos que se descrevem como evangélicos está gradualmente corroendo a do protestantismo mais “clássico”, o luterano-reformado.
Ora, assim como o catolicismo, o protestantismo luterano-reformado está a tornar-se urbanizado. As regiões rurais do protestantismo histórico – Cévennes, Drôme ou Poitou – onde os huguenotes perseguidos no século XVII e incapazes de fugir para o exterior se refugiaram, estão com as suas igrejas vazias. “
A segunda mudança no protestantismo luterano-reformado é que a fé não é mais transmitida pela família, o que também explica a crise que o protestantismo enfrenta nas áreas rurais. “
Numa sociedade que muitos dizem ser neutra, onde os padrões não são mais herdados, mas escolhidos, ninguém mais nasce protestante, católico ou mesmo evangélico. Uma consequência desse cristianismo eleito: a participação cada vez mais significativa, dentro do protestantismo francês, de neoprotestantes, isto é, fiéis nascidos em outra Igreja ou tradição religiosa e convertidos ao protestantismo.
A desconstrução e a politização
Estas informações que nos chegam dos USA e da França têm algo em comum: os evangélicos (até televangélicos) apresentam-se com uma hermenêutica linear e concretizam a sua mensagem na vida do dia-a-dia. São as circunstância do dia que os levam a construir uma linguagem “religiosa” que visa a criação de um modelo comportamental.
Deste modelo surge a necessidade de um alinhamento de fronteira – os nossos – criando movimentos de massa com necessidades de afirmação política. E tudo isto a partir do “texto sagrado”, sempre lido como “aviso” mas interpretado com a liberdade de cada um.
Os evangélicos interpretam assim o dia-a-dia de acordo com as suas necessidades (sociais, económicas, políticas) aceitando, como segurança (gramática) da sua narrativa, a Bíblia.
São-lhes estranhos conceitos como “comunidade”, “partilha”, “vivência do sagrado”; antes optam pela palavra de “quem manda” ou quer comandar “um exército” , sempre contra alguém.
A realidade é linear – cumprir os preceitos de Deus – como se a vivência da divindade, a revelação do sagrado fossem assuntos complicados para entender e por isso de aceitar, sobretudo porque para os evangélicos nada há a interpretar, muito menos o exercício de “acolher a manifestação do sagrado” para inspiração e motivação pessoal dos crentes/religiosos e suas comunidades. Os evangélicos não têm dúvidas, e provavelmente “nunca se enganam”.
A desconstrução
O revivalismo religioso liderado pelos evangélicos enfrentou a tese europeia da desconstrução dos valores para criar uma nova sociedade revolucionária, ela própria capaz de refundar a nova civilização prometida pelo marxismo. (Ainda se lembram do marxismo? o dialético e também científico?)
Assistimos agora à chamada “era do vazio” na Europa, também nos USA onde a secularização é galopante. Convém que nos lembremos do registado interesse pela disputa na afirmação do laicismo (no ataque ao simbólico comum, por exemplo retirada do crucifixo das escolas , por serem “públicas”!). É de sublinhar que todos os governos europeus cavalgaram o apagamento da memória e cultura simbólica de natureza religiosa em glorificação “neutral” pela libertação das pessoas e comunidades do “jugo” – diziam eles – desse peso da cultura cristã.
Contra esta desconstrução lutaram e lutam os evangélicos e hoje cada vez mais influentes nas decisões nomeadamente políticas. E construíram a sua “alternativa”
A politização
Ao ganharem a guerra pelos “valores” – por falta de comparência nossa – os evangélicos são hoje uma força determinante nos USA e, por isso, no mundo. A sua linguagem “religiosa” fundamenta a hermenêutica do discurso político. Ao apoiarem claramente o discurso do “América Grande Outra Vez”, os evangélicos entendem essa missão como profética como se fosse oportunidade para uma nova “criação”.
E assim a narrativa política construída em oposição “à desconstrução” que foi feita na Europa (Ver Derridá), assume nos USA a afirmação de uma nova cultura que nos vem falar de uma nova democracia, esclarecendo também que se trata de uma nova direita em construção.
Os efeitos
Os efeitos estão à vista e chegam-nos a casa pela televisão: primeiro as notícias das vitórias da direita em vários países e depois o espanto dos comentadores “oficiais” da narrativa conveniente que tem em comum a crença de que nada muda no mundo “neutro” de que são apóstolos.
Mas muda e está á vista: a sociedade secular desabou, encontra-se na era do vazio e assiste atónita ao crescente controlo do poder por portadores de bandeiras conservadoras mas desumanizantes, comunicadores natos mas nada humanistas, e absolutamente desinteressados pelos excluídos da economia.
Anunciam um mundo novo, dizem-se religiosos e até acham que Trump dava um grande Papa.
“Balha-me” Deus.
Por Arnaldo Meireles
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