A fé do padre pedófilo

O que será um “círculo quadrado”? – uma expressão que usamos para referir um problema sem solução e até para sublinhar a impossibilidade natural de algo acontecer ou ser explicado. Aquela confissão para manifestarmos a nossa incapacidade para explicar acontecimentos para os quais não encontramos nenhuma luz, no meio de uma floresta de enganos que tantas vezes visitamos.

Relembro António Alçada Baptista, no seu livro Peregrinação Interior, que logo no tomo I, nos avisava (em 1971) que vivemos tempos conturbados e onde – entre exemplos diversos – assinalava a existência de “padres que não têm fé”.

Ele avisou! E agora verificamos o profundo sentido do que nos falavam na catequese quando eramos crianças, o pecado mortal. Sim, porque estamos a falar da morte mais estranha e implacável, aquela que mata a dignidade de um ser humano e o obriga a viver com ela nos dias que a vida lhe dá – às vítimas de pedofilia.

O pecado mortal

É um pecado que destrói a caridade no coração da pessoa por uma infração grave à Lei de Deus. Desvia o ser humano de Deus. E é caracterizado por “três condições”:

  • tem por objeto uma matéria grave;
  • é cometido com plena consciência;
  • e de propósito deliberado.

Estamos no domínio da negra realidade que não queremos encontrar, mas por ser evidente e clara impõe-se na comunidade porque afecta os nossos: as vítimas condenadas na sua intimidade a uma pena perpétua que raramente vem à luz do dia porque rumina a sua confiança impedindo-a de trazer o seu sofrimento à luz das palavras. Uma tragédia silenciosa.

O que é um padre?

“Na Igreja e para a Igreja, os sacerdotes são uma representação sacramental de Jesus Cristo, Cabeça e Pastor”, São João Paulo II.

Quando um padre é formado ele está preparado para emprestar o seu corpo e espírito, ou seja, todo o seu ser, ao Senhor, fazendo uso dele “especialmente nos momentos em que ele realiza o Sacrifício do Corpo e Sangue de Cristo quando, em nome de Deus, na Confissão Sacramental, ele perdoa os pecados.

O círculo quadrado

Ao destruir a caridade na sua relação pessoal, o padre pedófilo – com o poder de perdoar os pecados! – anula e evita a possibilidade da manifestação de Deus e perde – porque desperdiça – a oportunidade e a possibilidade real de em nome d’Ele falar e sobretudo de representar a Igreja que, tendo confiado nele, lhe entregou uma comunidade para servir

Transformado em “funcionário do altar”, o padre pedófilo administra os “sacramentos”, mantém o “emprego” e safa-se na vida, enquanto não é descoberto, e assim experimenta grande sagacidade na fuga à verdade pessoal. E por isso, desiste, de facto, com o empenho emocional dos cobardes, sem vergonha e sobretudo sem noção da honra, de perceber e aceitar o compromisso de quinta-feira santa que o deveria levar a pedir a resignação.

O padre pedófilo serve apenas para isto: provar e explicar o que é um círculo quadrado.

Lavar a lama

A iniquidade do padre pedófilo cobre de lama a Igreja que o acolheu. Ela treme na sua estrutura ao verificar o terramoto escondido – outras vezes, nem por isso – e que agora veio à luz do dia. Mas esperemos que a Igreja não espere pela “ajuda internacional” para intervir aqui.

A seu crédito tem a decisão (única no país) de ter criado uma “comissão (verdadeiramente) independente” para avaliar os casos conhecidos e entretanto comunicados. O relatório tem a clareza que a autoridade dos membros lhe conferiu.

Compete agora aos senhores bispos uma decisão rápida, clarividente, que esteja ao nível da preocupação dos crentes: a imediata suspensão de funções dos suspeitos já identificados.

A caridade com as vítimas

Acontece que o pecado dos padres pedófilos também é nosso. Eles fazem parte da nossa pertença, mas as vítimas também. E se destes padres deve tratar a hierarquia, das vítimas devemos ser nós. O sofrimento também é nosso, como a vergonha e a tristeza: há que encontrar e fazer caminho, com o cuidado de querer bem.

Até no meio de uma floresta muito negra há raios de sol que nos alimentam a esperança nos dias do amanhã. Permitem-nos ver, se calhar reconhecer, valores escondidos ou até esquecidos.

Refiro-me aos milhares de padres e outras pessoas que dedicam a sua vida no serviço eclesial e à sociedade portuguesa, na maioria das circunstâncias no âmbito do anonimato e ao serviço da comunidade. São exemplos solenes do almoço de quinta-feira que devem ser acarinhados por todos nós.

Por Arnaldo Meireles

 

 

 

 

 

 

 

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