O desafio do trabalho digno num mundo em mudança

Organizações da Igreja Católica partilharam a sua reflexão em outubro passado sobe o “trabalho digno” como metodologia para enfrentar um “mundo em mudança” Veja a seguir o texto na íntegra.

O DESAFIO DO TRABALHO DIGNO NUM MUNDO EM MUDANÇA 

Ao analisar a questão do desafio do trabalho digno num mundo em mudança,  guiamo-nos por princípios que colhemos na doutrina social da Igreja e que aqui  queremos realçar: 

Uma dignidade infinita é inerente a cada pessoa humana, para além de toda a  circunstância e em qualquer estado ou situação se encontre (Dignitas infinita n. 1). 

Através do trabalho, a pessoa, criada à imagem e semelhança de Deus, continua,  desenvolve e completa a obra do Criador (Laborem exercens n. 25). 

O facto de o ser humano ser criado à imagem de Deus e receber o mandato de  dominar a terra não lhe confere um domínio absoluto sobre as outras criaturas. Os textos  bíblicos convidam a «cultivar e guardar» o jardim do mundo (Génesis 2, 15). O ser  humano pode tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência,  mas tem também o dever de a proteger e garantir a continuidade da sua fertilidade para  as gerações futuras (Laudato sí n. 67 e n. 124). 

É através do trabalho que o ser humano o realiza, realizando-o a ele também nas  suas múltiplas dimensões, tornando-se “mais pessoa” (Laborem exercens, n. 9). Existe  também uma dimensão espiritual no trabalho que possibilita o amadurecimento e a  santificação da pessoa (Laudato si’ n. 126). 

A economia, a empresa e o trabalho devem servir as pessoas, e não o contrário (“o  trabalho para a pessoa, e não a pessoa para o trabalho”). É este o sentido do tradicional  princípio do primado do trabalho sobre o capital (Laborem exercens, ns. 7 e 13). Capital,  natureza e trabalho devem estar ao serviço das pessoas que integram a comunidade que  constitui a empresa (e não o contrário), a sua rendibilidade não pode sacrificar a dignidade  e direitos dessas pessoas. 

A dimensão social do trabalho

O trabalho humano possui uma intrínseca dimensão social; trabalhar implica  trabalhar com outros e para outros (Laborem exercens, n. 51). Daqui surge a necessidade  de desenvolver uma conceção correta do trabalho, que nos leve a refletir sobre o sentido  e a finalidade da ação humana sobre a realidade e sobre a relação que o ser humano pode  ou deve estabelecer com o outro diverso de si (Laudato si’ n. 125). 

Para além da diferente valorização do trabalho na sua vertente objetiva, que pode  justificar diferenças salariais, há que considerar a sua vertente subjetiva, enquanto  expressão da dignidade da pessoa que trabalha, vertente que torna igualmente digno  qualquer trabalho, mais ou menos qualificado (Laborem exercens, n. 6). 

A justiça de um sistema socio-económico dever ser apreciada segundo o modo  como nesse sistema é equitativamente remunerado o trabalho; a melhor forma de realizar  a justiça nas relações entre trabalhadores e dadores de trabalho é a que se concretiza nessa  remuneração (Laborem exercens, n. 19).

Há que encarar a justiça das relações laborais numa perspetiva universal e para tal  serve um «salário básico universal, para que em tempos de automatização e inteligência  artificial, em tempos de informalidade e precarização laboral, que ninguém seja excluído  dos bens básicos necessários para a subsistência» (Discurso do Papa Francisco no 10º  aniversário do Encontro Mundial de Movimentos Populares). 

A pessoa que trabalha deseja não apenas receber uma justa remuneração, deseja  também que no processo de produção tenha a oportunidade de nele empenhar a sua  iniciativa e criatividade, sem que se sinta apenas parte de uma engrenagem ou simples  instrumento de produção (Laborem exercens, n. 15). 

O trabalho torna possível a constituição de uma família, que é um direito  fundamental e uma vocação da pessoa (Laborem exercens, n. 10). As condições do  trabalho (incluindo a remuneração e a sua duração) devem favorecer, e não penalizar, a  vida familiar do trabalhador (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 294). 

Como Deus repousou ao sétimo dia (Génesis, 2,2), também a pessoa, criada à Sua  imagem, deve gozar de suficiente repouso e tempo livre que lhe permita cuidar da vida  familiar, religiosa, social e cultural. Para tal, deve, antes de mais, ser respeitado o  domingo como dia de descanso comum (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n.  284).  

Quando a precariedade laboral se generaliza, geram-se formas de instabilidade  psicológica e torna-se difícil a constituição de uma família aberta à vida ou a realização  de outros projetos pessoais duradouros (Caritas in veritate, n. 25). 

O desenvolvimento integral da pessoa

O desenvolvimento integral da pessoa humana no trabalho não contradiz, antes  favorece a maior produtividade e eficácia do próprio trabalho (Laborem exercens, n. 43).  Uma situação estrutural de insegurança gera comportamentos antiprodutivos e de  desperdício de recursos humanos, onde o trabalhador não desenvolve a sua criatividade.  Os custos humanos são sempre também custos económicos, e as disfunções económicas  acarretam sempre também custos humanos (Caritas in veritate, n. 32). 

O trabalho é um bem que deve estar ao alcance de todos aqueles que são capazes  de trabalhar; o pleno emprego é um objetivo de todo o ordenamento socio-económico  orientado para a justiça e para o bem comum (Compêndio da Doutrina Social da Igreja,  n. 288). Por isso se deve perseguir como prioritário o objetivo do acesso ao trabalho para  todos (Caritas in veritate n. 32 e Laudato si’ n. 127). 

No combate à pobreza, os subsídios devem ser sempre «um remédio provisório  para enfrentar emergências», porque o objetivo é o de conseguir uma vida digna através  do trabalho (ter a dignidade de «trazer o pão para casa»). «O trabalho é uma dimensão  essencial da vida social, porque não é só um modo de ganhar o pão, mas também um  meio para o crescimento pessoal, para estabelecer relações sadias, expressar-se a si  próprio, partilhar dons, sentir-se co-responsável do mundo e, finalmente, viver como  povo» (Fratelli tutti, n. 162).

As organizações sindicais desempenham uma missão em prol da justiça, são um  fator construtivo de ordem social e de solidariedade e, portanto, um elemento  indispensável da vida social (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 288). 

A iniciativa económica é expressão da inteligência humana e da exigência de  responder às necessidades das pessoas de modo criativo e colaborativo (Compêndio da  Doutrina Social da Igreja, n. 343). A criação e manutenção de postos de trabalho por  parte dos empresários é uma forma de concretizar a função social da propriedade privada  e o destino universal dos bens (Centesimus annus, n. 43). A atividade empresarial  orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos pode ser uma maneira  muito fecunda de promover o bem comum da região onde se desenvolve (Laudato si’ n.  129) 

Nas grandes decisões estratégicas e financeiras, os empresários não podem seguir  apenas critérios de natureza financeira ou comercial, esquecendo a dignidade humana dos  trabalhadores, que são o património mais precioso da empresa (Compêndio da Doutrina  Social da Igreja, n. 344). Renunciar ao investimento nas pessoas para se obter maior  receita imediata acaba por se revelar como uma má opção para a sociedade (Laudato si’  1.128).

Diante de todas as inovações e transformações do mundo do trabalho ditadas pela  tecnologia, há que evitar o erro do determinismo; essas inovações e transformações  devem ser orientadas de modo a que sirvam para o desenvolvimento da pessoa, da família,  das sociedades e de toda a humanidade (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 377). 

Baseados nestes princípios que colhem da doutrina social da Igreja, e  analisando a situação portuguesa atual, as organizações subscritoras deste  manifesto declaram o seguinte: 

  • Em Portugal persiste o fenómeno dos “working poor” (trabalhadores com  rendimentos que não lhes permitem superar a pobreza), persiste o trabalho ilegal e/ou  clandestino, persistem, ainda, elevados índices de precariedade, e não desapareceu a  necessidade de combater as desigualdades no trabalho entre homens e mulheres.  
  • A precariedade (num quadro de legalidade, ou não, com recurso frequente aos  falsos “recibos verdes”) atinge hoje grande número de trabalhadores e de modo particular  os jovens, o que em muito dificulta a realização dos seus projetos pessoais, como o de  constituir família.  
  • Novas formas contratuais, como as relativas ao trabalho em plataformas digitais,  acentuam essa precariedade e não protegem devidamente direitos laborais anteriormente  consolidados 
  • Impõe-se em muitas situações a redução e reorganização dos horários de trabalho,  de modo a que estes não prejudiquem injustificadamente a vida familiar ou outras formas  de realização pessoal para além da esfera laboral; nesse sentido, é de limitar o trabalho ao  domingo 
  • A transição digital e a transição energética contribuírão para a destruição de  muitos empregos e a reconversão profissional dos trabalhadores afetados não será isenta de dificuldades; para enfrentar esse desafio exige-se um esforço redobrado de cooperação  e solidariedade que mobilize o Estado e a sociedade civil
  • A inteligência artificial não deverá substituir empregos e funções que só  qualidades especificamente humanas permitem desempenhar de modo conforme ao bem  integral das pessoas  
  • Não se têm registado os desejáveis progressos no âmbito da segurança no trabalho;  continua a ser anormalmente elevado o número de acidentes de trabalho e de doenças  profissionais 
  • A valorização do trabalho agrícola depende da valorização dos produtos agrícolas;  o Estado português e a União Europeia devem regular o mercado de modo a que o  agricultor não continue a ser o “elo mais fraco” entre “o prado” e “o prato” 
  • A média de idades dos trabalhadores agrícolas portugueses ronda os sessenta e  quatro anos; este facto acentua o perigo de acidentes e explica a necessidade de recurso a  trabalhadores imigrantes. 
  • O trabalho de imigrantes na agricultura e noutros setores é indispensável, mas  exige um eficaz controlo das condições em que se realiza: salários e habitação dignos,  plena integração social 
  • É importante tornar os mecanismos existentes de proteção social sustentáveis e  cada vez mais justos e equitativos. 
  • Um dos melhores caminhos para efetivar a justiça social e o trabalho digno é o de  aumentar os níveis de autorregulação por parte dos parceiros sociais, isto é, aumentar e  promover o Diálogo Social, nomeadamente através da negociação coletiva.  
  • O caminho para uma sociedade mais justa só se alcança com melhor distribuição  da riqueza, com melhores condições de trabalho que promovam a saúde e bem-estar dos  trabalhadores, com formação profissional de qualidade e com o aumento da  produtividade; por consequência, teremos empresas mais saudáveis e trabalhadores mais  motivados. 

Lisboa, 12 de outubro de 2024 

Ação Católica Rural  

Associação Cristã de Empresários e Gestores 

Cáritas Portuguesa 

Comissão Nacional Justiça e Paz

Federação Solicitude 

Juventude Operária Católica 

Liga Operária Católica – Movimento dos Trabalhadores Cristãos 

Metanoia – Movimento Católico de Profissionais

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