Respirações interiores numa ERPI – Reflexão

Muitos são os profissionais que exercem funções nas Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas – ERPI – e muitos são os profissionais que exercem em outra instituição ou empresa e que tem um ou mais familiares em ERPI. Este artigo é para ambos! Correndo o risco de ser demasiado dura, começo por desafiar a um pequeno exercício de visualização mental:

“Sente-se numa posição confortável, feche os olhos e concentre-se na sua respiração. Inspire e expire profunda e lentamente. Quando sentir o corpo completamente relaxado leve a sua imaginação para um dia no futuro, imagine que está sentado com pessoas que lhe são significativas e que estão a ter uma conversa sobre a necessidade de ter de ir para um lar, por já não ter condições de estar sozinho/a em casa, devido ao risco de queda, por já não conseguir fazer as suas refeições, cuidar da sua higiene, entre todas as outras tarefas do dia-a-dia. Sair de casa é um risco, devido às dificuldades de locomoção, apesar de ter um andarilho as ruas não são direitas e para aceder à rua tem de subir e descer escadas, apesar do prédio ter elevador tem alguns degraus para o acesso ao interior do prédio.

A solução é ir para um lar, uma vez que os seus filhos não conseguem prestar-lhe o apoio que gostariam e de que necessita. Sabe que o lar é a solução mais viável e mais segura, que não deixa de fazer parte da sua família até porque o/a vão buscar todos os fins-de-semana para estarem todos juntos.

Essa rotina vai continuar mesmo estando num lar. Quando chega ao lar, tem toda uma equipa muito simpática e carinhosa que lhe mostra as instalações, lhe explica a rotina do dia-a-dia, pode observar que há muitas actividades a decorrer (parecem muito interessantes e sente-se muito animado/a). Apresentam-lhe também o seu quarto, que irá partilhar com mais duas pessoas (que não conhece), indicam-lhe qual será o seu guarda-fatos e a sua mesinha de cabeceira onde pode colocar algumas fotografias das pessoas que lhe são significativas, tem ainda um pequeno espaço onde consegue colocar um ou dois livros. Sendo o espaço livre tão reduzido e partilhado não pode trazer nem 1% dos seus objectos mais importantes, tendo ficado tudo em sua casa. Dão-lhe também a indicação de que o quarto será apenas para dormir ou descansar um pouco durante o dia, porque se espera que participe nas actividades realizadas durante o dia para que se mantenha física e mentalmente activo.”

Como se sente? Os pensamentos e as sensações físicas que está a sentir no momento em que faz este pequeno exercício imagético? Sente-se bem, seguro, em paz, em casa? Finalmente pode descansar e aproveitar o melhor que a velhice trás, tal como serenidade, sabedoria, respeito e prestígio? Se as respostas, honestas, que der a si mesmo neste momento forem positivas, perfeito!

Não sentirá de todo insegurança, mal-estar emocional, não irá experienciará nenhum sofrimento físico, emocional ou existencial, aceitará de forma muito serena e adaptativa as perdas de funcionalidade, os diagnósticos de doenças degenerativas, doenças crónicas e incuráveis, a consciência da própria finitude, a morte dos entes queridos e as reduzidas interações sociais serão vivenciadas de forma serena, de aceitação e tranquilidade.

Se assim for, felizmente não irá necessitar de todo da intervenção dos cuidados paliativos nas Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas. No entanto, e infelizmente, este não é o cenário real na grande maioria dos casos das pessoas que deixaram as suas casas e as suas famílias pelos mais diversos motivos. Como tal o sofrimento existe nas ERPI, por melhores que sejam as estruturas e as próprias equipas, pode acreditar-se que se dá tudo, no entanto continua a não se conseguir dar a única coisa que, na maior parte dos casos, a pessoa institucionalizada deseja: “a minha casa… as minhas coisas!… poder morrer em casa, junto dos meus…”.

O que nos diz a literatura

O presente artigo pretende primeiramente elucidar de forma muito breve o que nos diz a literatura relativamente ao tema. De seguida pretende, por um lado, sensibilizar para o sofrimento multidimensional no final da vida, muitas vezes mascarado e outras tantas bastante evidente, bem como sugerir algumas estratégias que podem validar e minimizar o sofrimento sentido.

Fazendo uma breve revisão da literatura, podemos ler em Menezes e Lopes (2014) a importância de aceitarmos que as pessoas idosas compreendem a proximidade com a morte, percebem que o processo de morrer é contínuo e está presente no seu dia-a-dia. Esta iminência da própria finitude apresenta-se de modo simbólico pelas perdas experienciadas na velhice, surgindo como uma forma de preparação para a morte real. Ressalva-se que além da morte de pessoas significativas, das limitações cognitivas, físicas, o final das relações profissionais (Cocentino & Viana, 2011; Menezes & Lopes, 2014), os idosos assistem ainda à morte de pessoas da mesma idade, o que
inevitavelmente os leva a refletir sobre a própria morte.

A reflexão sobre as conquistas, sobre o que foi a sua vida, o medo pela proximidade da morte, levam a uma ambiguidade de sentimentos. Faria, Santos & Patiño (2017) aludem que os idosos podem por um lado sentir-se ainda mais importantes, amados e realizados, e por outro sentir-se angustiados, experienciar distress, como consequência das perdas inerentes ao processo de envelhecimento e da proximidade com a morte.

Uma das estratégias de coping com maior impacto e que permite uma harmonização do bem-estar ao longo da vida é a espiritualidade/religiosidade, permitindo um melhor ajustamento face os problemas de saúde e sociais (Arrieira, Thofehrn, Porto, Moura, Martins & Jacondino 2018; Santos et al., 2013).

Um outro facilitador no processo de envelhecimento positivo, é a rede de suporte emocional, relacional, instrumental e financeiro, proporcionado pelas pessoas significativas ou instituições (Guedes, Lima, Caldas & Veras, 2017).

Os cuidados paliativos

Posto isto, os cuidados paliativos oferecem uma abordagem integral de modo a promover uma experiência positiva no fim da vida (Costa, Santos, Yarid, Sena & Boery, 2016). Pretendem assim auxiliar na prevenção e alívio do sofrimento, promover a qualidade de vida da pessoa idosa com doença incurável, progressiva e avançada, e dos seus familiares.

Torna-se assim fundamental a identificação precoce dos doentes com necessidades paliativas, a avaliação e o tratamento da dor e de outros problemas de natureza física, psíquica, social, existencial e espiritual que estão alterados e careçam de ser ressignificados (Carvalho & Parsons, 2012; Santos et al., 2018). Ressaltar que a identificação das necessidades, além de prevenir a prestação de cuidados desadequados às necessidades dos doentes, vai prevenir a aplicação de medidas que causam mais sofrimento do que qualidade de vida e alívio do sofrimento.

Podemos ainda aludir que os cuidados paliativos têm tido maioritariamente um enfoque nas populações jovens e doenças oncológicas, apesar da população envelhecida ter uma maior probabilidade de morrer devido a outras doenças crónicas progressivas, bem como a condições de
elevada fragilidade e que requerem cuidados específicos e complexos no final de vida (Froggatt, Payne, Morbey, Edwards, Finne-Soveri, Gambassi e Van den Block, 2017; Who, 2004).

Um outro artigo evidência que “a multimorbilidade nos idosos causa uma série de problemas físicos, psicológicos e sociais, que se traduzem em necessidades complexas de apoio e suporte, compatíveis com os cuidados paliativos prestados por equipa multidisciplinar que consiga dar respostas às diferentes dimensões do sofrimento do idoso, assegurando os cuidados contínuos e integrados” (Van den Block, Albers, Pereira, Pasman, Onwuteaka-Philipsen, 2015). Connor & Bermedo, 2014 sinalizam algumas das doenças
comuns na população idosa no âmbito dos cuidados paliativos: tais como Alzheimer, Parkinson, doenças respiratórias crónicas, doenças cardiovasculares, diabetes, artrite reumatoide e cancro, entre outras.

Os profissionais que cuidam destes utentes poderão questionar, quais são então os indicadores
que nos dizem que o doente está próximo do final de vida?

De acordo com o Gold Standards Framework Prognostic Indicator Guidance (GSF-PIG), existem três
indicadores sugestivos:

1. Pergunta Surpresa (PS) – “Ficaria surpreendido se este doente morresse nos próximos meses, semanas, dias?”;
2. Indicadores gerais de declínio funcional, perda de peso e outros indicadores;
3. Indicadores clínicos específicos de condições crónicas avançadas (doenças oncológicas, falência de órgãos, demências, fragilidade).
Murray et al. (2005), acrescenta que este instrumento possibilita também identificar os doentes em fim de vida de acordo com as três principais trajetórias de doença:

1. Declínio rápido (ex.: doença oncológica);
2. Declínio gradual, inesperado (ex.: falências de órgão);
3. Declínio gradual prolongado (ex.: demência/fragilidade).

Passemos, de seguida, ao segundo objectivo deste artigo. Dada a complexidade e a necessidade de respostas para a minimização do sofrimento existente nas ERPI, parece-me importante reflectir acerca do que tem sido verbalizado por utentes, famílias e profissionais, ao longo da minha prática clínica.

Sofrimento expressado pelos utentes nas ERPI:

  • Luto por filhos, cônjuge, amigos significativos e outros familiares com laços afectivos fortes;
  • sentimentos de inutilidade social e familiar “já não sirvo para nada, já não posso trabalhar, nem fazer nada!”;
  • “peso dos anos”; “a morte esqueceu-se de mim”; “quem deveria morrer era eu, não a minha filha”; “estou cansada da vida”; perda do sentido de vida/ propósito de vida;
  • solidão; medos associados com as doenças e com as consequentes limitações;
  • afastamento do meio familiar e social; doenças com perda funcional progressiva, que deixam a pessoa numa dependência total de terceiros ao nível dos cuidados básicos de higiene, vestir/despir, locomoção de forma autónoma;
  • sentimento de abandono;
  • incapacidade para manter actividades que lhes eram prazerosas (a título de exemplo: perda da visão e do controlo ao nível da motricidade fina que impossibilita o ler, o escrever, o realizar trabalhos minuciosos);
  • dificuldade em gerir as mortes de outros residentes;
  • ver o estado de fragilidade de outros residentes que os leva a vislumbrar um possível futuro neles mesmos; dificuldade em gerir o sofrimento observado em outros residentes;
  • consciência de que o lar “será a sua última morada”;
  • medo da dependência e de ser colocados de lado (por já não poderem participar nas actividades realizadas);
  • certeza de que nunca mais verão as suas casas;
  • não querer demonstrar à família que o tempo das visitas nunca são sentidos como suficientes;
  • crença de ser uma sobrecarga financeira para as famílias;
  • incapacidade de compreender o porquê de estar num lar;
  • revolta para com a família por não ter contado que iriam para um lar;
  • expectativas de ser temporário que são defraudadas quando percebem que não é uma decisão temporária;
  • não lhes é dado espaço para manifestar vontades acerca do seu final de vida;
  • ocultação sobre a morte de familiares que os residentes interpretam como abandono dessa pessoa…

Sofrimento expressado pelos familiares de utentes das ERPI:

  • Emoções intensas de impotência, frustração, culpa, tristeza, fracasso e abandono dos seus familiares.
  • Sintomas de distress (stress negativo) após ou antes da visita, com elevado impacto na dinâmica familiar e social.
  • Narrativas de culpabilização e medo de não vir a ser perdoado pela pessoa institucionalizada.
  • Manifestações de revolta contra si próprio, por não ter outro tipo de resposta ou não poder cuidar.
  • Dificuldade em dormir ou comer (ou fazê-lo em excesso) para gerir o distress da visita e da progressão da doença e perda de funcionalidade do familiar institucionalizado.
  • Modificação dos hábitos de autocuidado, após a institucionalização.
  • Dificuldades em delegar cuidados e confiar na equipa da ERPI.
  • Inseguranças por não querer “estar sempre a chatear a equipa”.
  • Medo de ser castigado por não cuidar dos seus pais, como era habitual na sua família. Evitar as visitas ou fazê-las por um curto período de tempo, devido a medos associados à reação da pessoa institucionalizada.
  • Sentir-se obrigado ou pressionado a institucionalizar os pais por decisão de outros elementos da família (Duarte, 2023).
  • Falta de acompanhamento no luto após a morte do residente.
  • Solidão e ausência de validação das emoções sentidas, por parte da família, dos pares e das equipas.
  • Medos associados ao julgamento…

Sofrimento expressado pelos profissionais das ERPI:

  • Medos associados à morte.
  • Medo de se “afeiçoar” muito ao utente e não ser capaz de gerir o luto.
  • Não conseguir gerir emocionalmente os conflitos entre a equipa (discordância de valores e formas de trato por parte de alguns colegas).
  • Lutos dos utentes que são gatilhos dos lutos pessoais.
  • Desgaste físico, emocional e psicológico na sequência das exigências que os cuidados requerem. Entre outros, a serem desenvolvidos num próximo artigo.

Seguem-se algumas estratégias que podem ajudar a prevenir, aliviar ou minimizar o sofrimento sentido, sem ter uma especialidade em Cuidados Paliativos:

  • Esteja presente e genuinamente disponível;
  • Tenha uma escuta activa.
  • Escute além das palavras que são ditas;
  • Dê espaço para a manifestação verbal (narrativas) e/ou comportamental (choro, agitação, …) das emoções sentidas;
  • Valide, disponibilize-se e acolha de forma compassiva o sofrimento do outro;
  • Comunique com os profissionais (Psicólogo, Assistente Social, Enfermeiro, Médico) o sofrimento identificado na pessoa (seja ela o utente, outro elemento da família ou um profissional da instituição);
  • Esteja atento, desperto e sensível para conseguir identificar o sofrimento no outro;
  • Não finja cegueira selectiva, esta não minimiza o sofrimento, mas aumenta-o! Agrava-o!
  • Seja compassivo;
  • Abra espaço à comunicação, ou promova esse mesmo espaço;
  • Não esconda verdades na tentativa de proteger, recorde-se que pode haver questões por resolver;
  • Permita à pessoa partilhar pensamentos e desejos acerca do seu final de vida;
  • Comunique de modo empático, disponível e ausente de julgamentos ou preconceitos para conhecer as vontades da pessoa, tais como, o que quer vestir quando morrer, onde e como quer o seu funeral, quem quer presente ou quem não quer, etc;

Esteja atento às suas próprias emoções, para que saiba distinguir se certos medos, mitos ou ideias são suas ou do outro. Muitas vezes evitamos o contacto com o sofrimento do outro, por não sabermos gerir internamente a forma como esse sofrimento ressoa em nós próprios;

  • Não relativize a dor do outro: “está sempre a queixar-se!”. Muitas vezes a dor é emocional e existencial, mas sentida como dor física. Também estas dores são passiveis de ajuda para a sua diminuição;
  • Escute narrativas tais como: “mais valia morrer!”, “estou cansada de viver!”, “não ando cá a fazer nada!”. Estas e outras narrativas tem por trás sofrimento e a necessidade de falar sobre a morte, sobre o sentido da vida, pelo que é importante ser dado esse espaço sem medos e/ou tabus;

Quando a pessoa está de luto pela morte de outro utente, não se mostre indiferente, proporcione compreensão e conforto, dê espaço para a pessoa integrar a perda, reforce os momentos familiares. Proporcione momentos prazerosos como facilitador para voltar à normalidade.

  • Crie junto com o seu familiar um álbum de memórias, com fotografias, com relatos de
    histórias de vida, com episódios divertidos, com mensagens/lições que a pessoa queira deixar
    para as pessoas que lhe são significativas.
  • Ajude a escrever cartas aos netos e bisnetos, ou outras pessoas significativas (se for essa a sua vontade), para momentos futuros em que a pessoa possa já não estar presente (seja pela doença, seja por já ter morrido).
  • Contar a sua história e aprendizagens é dar sentido à vida de quem viveu e superou inúmeros desafios, todas as histórias valem a pensa ser contadas! Todas as histórias têm olhares diferentes sobre o que é a vida e sobre o que nela importa, permita-se crescer à luz de quem já muito viveu e experienciou e tem ainda uma lição a deixar.

A comunicação é a base de qualquer relacionamento, ela permite-nos por em comum, manifestar vontades, permite dar paz e serenidade, fortalecer relações, perdoar e ser perdoado.

Não receie a comunicação, não tenha receio de mostrar os seus sentimentos enquanto há ainda tempo de não deixar nada por dizer!
Muito mais há para reflectir acerca deste tema, por conhecer, partilhar, fazer e melhorar. A forma como cuidamos dos mais velhos tem de ser repensada, não podemos cuidar todos como se todos fossem cópias uns dos outros, actualmente assiste-se a um cuidar maioritariamente mecanizado, trazendo consequências nefastas para o próprio, para a família e para os próprios cuidadores.

Neste sentido, continuemos a desbravar caminho rumo à mudança de paradigma para dar a melhor qualidade de vida com dignidade, para prevenir e diminuir o sofrimento até ao último suspiro.

Por Susana Duarte

Referências bibliográficas:
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Cocentino, J., & Viana, T. (2011). A velhice e a morte: Reflexões sobre o processo de luto. Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia, 14(3), 591-600.
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Duarte, S. (2023). Impacto emocional da institucionalização dos pais, nos filhos!
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